quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Promessas da Lua (Parte 2)


O plano deveria ser posto em prática naquela noite, e tanto Doron como Teig estariam presentes, mas Kieran não disse uma só palavra acerca do que pensava fazer. Após o desjejum, ouvindo um idoso e trêmulo general discorrer sobre formações de batalha, ele deixou que sua mente se distanciasse, tecendo idéias e imagens em torno do objetivo central; uma estratégia foi traçada durante o almoço, e, nos breves momentos de descanso que se seguiram, ele se pôs a enumerar para si mesmo os gestos e as palavras que seriam necessários. Sua atenção, porém, foi bruscamente desviada, o aprendiz de mago se convertendo em jovem guerreiro no instante em que o Mestre de Combate pisou na arena.

Conhecimento sobre questões militares granjeava boa reputação, e a resistência nas marchas e exercícios era valorizada, mas o que realmente elevava um aluno da Escola de Guerra aos olhos dos mestres era o seu desempenho no manejo das armas. Nos dois primeiros anos, todos aprendiam a dominar as mais comuns - lança e espada curta, com ou sem o uso simultâneo do escudo -, mas depois disso podiam aprimorar sua técnica em apenas uma delas, ou ainda experimentar diferentes equipamentos. Alguns já tinham até se transferido para as companhias de arqueiros, embora a maioria continuasse a preferir a espada.

Kieran não fugia à regra, mas se destacava por ser um dos poucos a saber esgrimir com uma em cada mão. Ele praticava sempre que podia, no início usando armas de madeira, que não feriam de verdade, mas provocavam feios hematomas nos rapazes. No terceiro ano, passara às espadas de treino fornecidas pelo exército - honestas, mas muito feias, com o punho envolto em fio de lã e cheias de mossas - e desde o último Outono usava as que Mael lhe dera como presente de aniversário. Ou pelo menos esse fora o pretexto. Ele sabia que o mestre queria compensá-lo pela decepção que fora sua ida à guerra.

As novas espadas não eram muito superiores às antigas, mas tinham punhos decorados com placas de bronze e belas bainhas de couro. Suas lâminas eram retas e reluzentes. Outros rapazes possuíam espadas melhores, mas Kieran se orgulhava das suas, tal como se orgulhava da destreza com que sabia manejá-las.

É claro que os desafios eram constantes.

Como de hábito, o treino começou com um aquecimento, uma rápida luta corporal que encheu de areia túnicas e cabelos. Depois, os rapazes se dividiram de acordo com as armas - Doron se separando dos camaradas para treinar com o escudo e a maça - e o mestre de combate foi de grupo em grupo, orientando-os sobre como e com quem deviam se bater. Kieran esperou que lhe fosse designado um adversário, mas, antes que o mestre chegasse até ele, dois dos habituais companheiros de Declan o cercaram com as espadas em punho.

- Você usa as duas mãos - disse um deles, um louro de dentes espaçados chamado Dylan ap Cêth. - Pode lutar ao mesmo tempo com dois homens?

- Não vejo por que não - disse Kieran, encolhendo os ombros. Do outro extremo da arena veio então uma exclamação zombeteira, e ao olhar naquela direção Kieran deu com o Mão de Ferro, que segurava uma espada apenas um pouco menor que ele próprio.

- Com palitos como esses aí, qualquer um pode lutar - disse, atravessando a arena com passos pesados. - Quero ver usar espadas de verdade. Quero ver o que você faz com esta aqui.

- Nada, é claro - replicou Kieran. - Não há nada que um homem do meu tamanho deva fazer com uma espada assim.

- Que é isso! Você não é tão pequeno - contestou Dylan, perfilando-se ao lado do rapaz. - Meio magricela talvez, mas é mais alto que eu, e tem ombros largos.

- Tão largos que as águias se sentem confortáveis neles - riu Lír, o outro amigo de Declan, que tinha uma feia voz esganiçada. - Quando pousam, não querem mais voar. É ou não é?

- Calem essa maldita boca - atalhou Kieran, com mais raiva do que gostaria de demonstrar. - Se querem mesmo lutar, estou pronto. Se não...

- Ah, mas é você que não quer lutar - disse Declan, cortando o ar com a lâmina enorme. - Qual é o seu problema? O peso da espada? Você não pode fazer algum feitiço que a deixe mais leve?

- Isso! Faça uns truques para divertir a gente! - exclamou Dylan. - Ou tudo que o velho Mael lhe ensina é como cuidar daquelas águias piolhentas?

- Vocês vão se arrepender de ter nascido quando eu usar o que ele me ensina - respondeu Kieran.

O tom de voz fora adequado - firme e suave, acompanhado de um olhar penetrante, como tinha de ser - mas uma parte dele duvidava de que pudesse calar aqueles três, e, por isso, eles só tiveram um momento de confusão antes de escapar ao seu domínio.

- Você é que vai se arrepender um dia, seu bastardo - rosnou Declan, enquanto os outros piscavam para clarear a mente. - Sorte sua eu ter planos para esta noite e não querer sujar as mãos. Não fosse por isso...

- Kieran ap Fergus! - A voz de um empregado da Escola, parado junto à entrada da arena de treino. - Estou procurando o aprendiz do Mestre das Águias!

- Aqui - respondeu Kieran, dando um passo à frente. Sem dizer nada, o homem caminhou até ele e lhe entregou um pedaço amarfanhado de papel, no qual havia um bilhete rabiscado às pressas por seu mestre.

Kieran, já que você vai a Glen Thar, passe antes na Fonte Âmbar e dê uma olhada nos cavalos. Para ir, pode pegar o meu preto nos estábulos, mas traga-o de volta amanhã.
Quanto à Lei da Atração,


Kieran interrompeu a leitura e amassou o bilhete, irritado com a ordem que atrapalhava seus planos. Ele, que esperava ser um dos primeiros a chegar à festa, teria agora que se desviar do caminho, fazer uma parada talvez bem longa - e, sim, provavelmente encontrar-se com Fergus. A perspectiva contribuiu para azedar ainda mais seu humor naquela tarde, e ele nem conseguiu se alegrar quando o mestre de combate, inteirado do desafio do Mão de Ferro, reafirmou sua posição sobre o uso das espadas largas.

Bufando sob o bigode incipiente, Declan foi obrigado a medir forças com alguém do seu tamanho, e Kieran desarmou Dylan e Lír à primeira investida. Outros rapazes vieram a seguir, rapazes que não eram seus inimigos mas que disputavam o privilégio de vencê-lo, e ele derrotou um a um até que, suado e afogueado pelo esforço, foi obrigado a pedir uma trégua. A dupla com a qual estava lutando baixou as espadas, sorrindo com satisfação, e Kieran foi até um tonel num canto da arena e despejou três baldes d´água pela cabeça abaixo.

- Quer parar por hoje? - perguntou o mestre de combate, e ele disse que sim, sem se importar com os comentários maldosos a que sua saída daria margem. Em sua túnica molhada, o cabelo grudando na testa e nos ombros, regressou ao alojamento da Escola de Guerra, onde dormia nas noites em que não estava a serviço do mago.

O lugar estava vazio e silencioso, o que dava às paredes de pedra uma qualidade sombria. Alguém como Doron teria logo começado a assoviar ou a cantar, mas Kieran gostou da privacidade, sem a qual não se sentiria à vontade para abrir seu baú. Era ótimo, por uma vez, não ter ninguém às suas costas perguntando o que era o maço de papéis enrolado num canto, ou a razão de haver tantos pares de meias, ou ainda - isso vinha dos garotos da cidade, mimados pelas mães - onde guardava suas túnicas decentes, já que todas no baú eram desbotadas ou cerzidas.

Kieran dependia da boa-vontade da irmã para cuidar de sua roupa e não possuía nada que fosse novo ou vistoso. Mesmo assim, tinha uma túnica decente, feita pela empregada do pai de Doron com o tecido que sobrara de um traje ritual. Não era muito fina, mas assentava bem, e Kieran a teria vestido se pudesse ir direto para a festa. Diante das ordens do mestre, porém - e da certeza de que inspecionar os cavalos o levaria a sujar as roupas e as mãos - ele enfiou a túnica numa bolsa, juntou-lhe um par de calças e roupa de baixo limpa e saiu do dormitório, pegando de passagem a jaqueta que pendia de um gancho na parede.

- Que pressa! Vai tirar o pai da forca? - perguntou um colega, vendo-o correr em direção aos estábulos. Ali, com a crina emaranhada e as pernas salpicadas de lama - mas pelo menos alimentado e descansado - ele encontrou o castrado negro reservado a seu mestre, e logo cruzava os portões de ferro da cidadela, as rédeas na mão esquerda enquanto a outra erguia no ar o medalhão usado como salvo-conduto.

Continua. Leia o início do conto clicando aqui

E siga em frente, na parte 3, clicando aqui.

2 comentários:

  1. oi, Ana,

    O que será que Kieran tem em mente? Curiosidade...
    bjos,
    vania

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  2. Rivalzinho muito do chato esse Declan! Vamos ver o que Kieran reserva para ele...

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