O desenho estava voltado para cima. Era pouco mais que um rabisco de criança, mas, além da parka de inverno e das tranças, ficava claro que Anna tinha olhos oblíquos e um pouco juntos. Esse era um traço comum a todos os elfos, inclusive os das tribos do Norte, mas o formato oval do rosto e os lábios cheios deram a ele o que pensar. Mesmo num desenho tão simples, era uma cara humana demais.
- Ela parece decidida. Mais do que eu esperaria de uma Mestra de Sagas – disse Finn, ao seu lado.
A farpa era dirigida a Shanion, mas este apenas deu de ombros, como se a conversa não estivesse à sua altura. Urien, por sua vez, se concentrou no jantar, e o caderno ficou onde estava, sob o escrutínio dos dois magos. Ou melhor, apenas o de Kieran. O que Finn observava na verdade era a expressão no rosto do outro.
Kieran alisava o canto do caderno com o polegar, um gesto inconsciente enquanto analisava o desenho. Anna estava de pé junto à cova do urso, mais fielmente retratado que ela própria, e segurava uma lança com as duas mãos. A ponta era de pedra, talhada com esmero, e o cabo de madeira era polido e desgastado pelo uso. Na escura tarde de inverno, em companhia de outros jovens da tribo, a discípula da Mestra de Sagas se embrenhara na floresta, acendera uma fogueira e a alimentara com galhos e musgo úmido, para então esperar, com o coração aos pulos, que a fumaça penetrasse na toca e expulsasse o urso atordoado. Em sua inexperiência, os caçadores se aproximaram demais da abertura, Anna mais do que todos, seus olhos cintilando como estrelas sobre um lago negro.
E então, o inesperado. Um urro, um único aviso, e o animal surgiu da toca, os dentes arreganhados, as garras cortando o ar a uma polegada do rosto de Anna. Ela rolou de lado e o atacou, gritando ao brandir sua lança, sentindo seu sangue esquentar com a emoção da caçada, tão real, tão viva... Tão selvagem e jovem e bela...
O ruído de vidro estilhaçado trouxe Kieran de volta ao presente. Uma janela malfechada acabara de bater, impulsionada pela brisa que ele não ouvira, nem notara se transformar num forte vendaval. Em seu prato, a sopa continuava intocada, enquanto os outros mestres já se serviam do ganso e dos legumes. Felizmente não olhavam para ele, que então baixou a cabeça e esvaziou o prato, emendando uma colherada na outra como nos tempos de camponês.
O caderno de Anna ficou sobre a mesa até o final do jantar. Kieran esperou que a maioria dos outros saísse antes de devolvê-lo a Camdell, depois caminhou, com o vento zunindo nos ouvidos, até a Ala Azul. Em seu quarto, na torre leste, as janelas estavam abertas, e alguns papéis deixados sobre a mesa tinham sido varridos para o chão. O mago os recolheu, prendendo-os sob um livro grosso para que não tornassem a voar, mas não fechou as janelas. Queria as forças da natureza por perto. Assim manteria mais vivas suas visões de Anna de Bryke.
Um som discreto e melodioso, de cordas sendo tangidas, o fez voltar sua atenção para um canto do quarto. Lá estava sua harpa, tão negligenciada nos últimos tempos. Kieran a ergueu com cuidado, levando-a até a janela, e pousou os dedos nas cordas, tentando achar um ritmo no vento agora mais sereno. Não o encontrou, mas mesmo assim a música fluiu, e com ela o rio sempre represado de suas emoções.
Por uma hora inteira, continuou a tocar, sem se dar conta do tempo que passava enquanto sua mente errava por estranhas paisagens. Diante dele surgiam mares estrangeiros, florestas com árvores carregadas de bagas vermelhas, montanhas cobertas da neve que seus olhos jamais tinham visto. Eram lugares do futuro, ou imaginários? Um bardo só podia sonhar, mas um mago saberia onde buscar a resposta.
Só que talvez não fosse bom conhecê-la antes do tempo. *******
Continua...
Leia a conclusão!
Imagem do urso da caverna: desenho de Diana Muller, baseado nas pinturas de Lascaux.
Oi, Ana,
ResponderExcluirVenho rapidinho em um intervalo do trabalho. Deveria fazer café, mas estou aqui lendo mais um ótimo conto seu. O café bem que pode esperar... Kieran é meio apressado... Bom, vamos aguardar para ver onde isso irá parar.
Beijos,
Vâbia
ô caramba, esse conto está demais. Você fez a transição para a imagem que Kirean formava na cabeça enquanto lia o caderno de forma perfeita. Nem eu notei quando começou!
ResponderExcluir(indo lero o final)