terça-feira, 1 de outubro de 2013

Enquanto a Chuva Cai (Final)


- Eu disse desde o início que queria conhecer outros lugares  – falei, e fiz uma pausa, preenchida por Kieran com o estalo da chave na fechadura. – Quero muito ir a um festival de teatro em Madrath e conhecer a primeira comunidade Odravas, na Floresta do Sol. Também quero ir a Kalket, fazer os testes da escola bárdica, mas sei que terei de passar alguns anos me preparando para isso.

- Ah. Bom, esses lugares são todos nas Terras Férteis – disse Kieran, parecendo mais tranquilo. – Não vai ser tão difícil.

Abriu a porta, revelando o interior aconchegante do nosso quarto. O piso era de madeira, coberto com tapetes e, desde o último outono, uma pele de urso que ganhamos de minha avó; as paredes eram decoradas com tapeçarias; o pequeno quarto de banho contava com água quente e a cama tinha lençóis e travesseiros macios. Eu nunca vivera com tanto conforto e apreciava o que tinha agora. Ainda assim...

- O que você tem? – perguntou Kieran de repente. Voltei-me e o encontrei sentado na pele de urso, diante da lareira que acabara de acender. A luz do fogo punha em evidência ora um, ora outro detalhe do seu rosto, mas o brilho era sempre o mesmo no interior dos olhos escuros. Olhos inquiridores.

- Não é nada. – Sentei-me ao lado dele, de pernas cruzadas, e peguei sua mão. – Só estava pensando nas viagens que pretendo fazer.

- Este ano não vai ser possível – disse ele prontamente. – É a vez de Finn e Sophia acompanharem os aprendizes do Terceiro Círculo a Riverast. No próximo ano serei eu, e se quiser você pode vir comigo. Acho que vai gostar de conhecer a Cidadela dos Magos.

- Claro que sim, mas isso é só no final do ano que vem. Ainda falta muito – repliquei.

- Como assim, falta muito? Você acabou de chegar a Vrindavahn! – exclamou Kieran. – E ambos temos compromissos com a Escola. Não podemos nos ausentar a cada três luas para que você visite as maravilhas de Athelgard!

- Eu sei, mas...

- Anna, sua vida agora é aqui – cortou ele, fitando-me com o cenho franzido. – Este é o lugar que escolhemos. Preciso acreditar que você é feliz comigo.

- Que ideia! Claro que sou – protestei. Era verdade, mas eu teria continuado a frase com um “é só que...” se algo no rosto de Kieran não me fizesse calar. O tom de suas palavras fora sério, quase duro; as sobrancelhas continuavam franzidas, mas os olhos não brilhavam de raiva e sim com uma mescla de amor, expectativa e uma ponta de angústia. Com toda a segurança que ele sempre demonstrara, o que vi naquele momento foi um homem atormentado, e eu sabia qual a razão.

Eu era a razão.

Kieran tinha medo de que eu fosse embora.

Respirei fundo, tentando achar as palavras certas para explicar o que eu sentia. Queria dizer que estava tudo bem, que eu o amava, que teríamos um filho e envelheceríamos juntos, mas que, além disso, eu tinha sonhos e planos dos quais não iria abrir mão. E que ele sabia disso tudo muito bem, portanto eu não devia ter que repetir.

E foi talvez por pensar dessa forma que, no fim, acabei por não dizer nada. Ou talvez tenha sido o jeito como ele me olhou e segurou meu rosto entre as mãos. Do lado de fora, a chuva tinha aumentado, e na torre nós tínhamos uma lareira e uma pele de urso quentinha. Além disso, tínhamos um ao outro. Naquela noite, esse era o lugar perfeito para se estar.

E Kieran logo achou um jeito de torná-lo ainda melhor.

Horas mais tarde, saí da cama onde ele dormia a sono solto e fui até a janela. A chuva caía em pancadas, escorria pelos vidros, borrava os contornos da paisagem lá fora. Mais um dia branco, um dia e amor e sagas, e eu sabia que aproveitaria cada momento abrigado pelas torres do Castelo. Mas também sabia que a chuva e o inverno não durariam para sempre.

E ali de pé, abraçando meus próprios ombros, perguntava-me o que aconteceria quando os caminhos estivessem secos.

3 comentários:

  1. Lindo, Ana. Acho que tudo o que Kieran quer é ter a Anna, no fim, e quase não entende esse jeito cheio de vida dela, seus outros desejos e anseios. O que sempre me parece é que ele é uma pessoa machucada que achou um jeito de viver, mas que acabou endurecendo mais do que a conta. E ela quer demonstrar que, embora ela tenha outros desejos e sonhos além da vida a dois, isso não diminui em nada o amor dela por ele. É uma bela mensagem também.

    (Olha eu viajando).

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  2. Neste conto deu para perceber um Kieran um pouco inseguro(o que é muito raro de se ver), com relação a felicidade da Anna a seu lado. Ele a ama muito e quer ter certeza de que a está fazendo feliz.
    E tem receio que as obrigações que os dois desempenham na escola acabe por frustrar os planos de Anna e com isso ela acabar se afastando dele.

    Recadinho pro Kieran:
    "Ah, para de bobagem Kieran, a Anna te ama, e tenho certeza que os dois vão dar um jeitinho que satisfaça os dois, se cada um ceder um pouco tudo vai dar certo!"

    Ana, adorei o conto, e deu para descobrir mais uma das mil facetas escondidas do Kieran e de alguns planos futuros da Anna. E também saber um pouquinho mais da vida dos dois à dois.

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  3. Obrigada pela leitura atenta, Bárbara! Como você pode ver, o Kieran tem suas inseguranças (como qualquer um, né?) e não é muito fã de viagens. O negócio dele é ficar com a Anna na torre, namorando ou pelo menos lado a lado enquanto leem e estudam. Já ela tem alma de andarilha e ainda não viu nada do que sempre sonhou ver, então... pode se preparar para muito conflito do casal no segundo livro! :)

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