terça-feira, 29 de abril de 2014

O Javali : um conto de Lear Encanta-Dragões (Parte 3)


       Meia hora depois, tendo cortado caminho por uma trilha nua e escarpada – em que foi bem difícil conduzir o porco -, Lear, Erdon e os quatro meninos chegaram ao Bosque das Abelhas, pelo qual, tinham certeza, Razek havia passado um pouco mais cedo. Durante a caminhada, os rapazes tinham explicado em que consistia seu plano, sem deixar clara a principal intenção, mas mesmo assim os garotos tinham aderido com entusiasmo. Queriam ver, é claro, a projeção de pensamento prometida por Lear – um encanto adiantado, que poucos aprendizes do Castelo dominavam -, mas a ideia de Razek se deparando com um javali era mais excitante, era prenúncio de emoção e de umas boas gargalhadas. Lohan foi o único a objetar, dizendo que Razek não gostaria daquilo, mas aceitou o argumento de Lear quando este afirmou tratar-se de uma boa experiência e que todos os magos deviam se preparar para imprevistos. Ou achavam que tudo na vida se daria de acordo com o que aprendiam nos manuais?
       - Razek, por exemplo, quer tudo a seu jeito – disse, enquanto se abaixava para esquadrinhar as marcas no solo. – Ele ainda vai me agradecer por coisas como estas.
       - Eu acho que ele não passou por aqui – disse Erdon, que examinava outra parte da trilha. – Pelo menos ainda não.
       - Tem certeza? Eu sinto que ele está perto – replicou o Encanta-Dragões. – Procure mais um pouco, aí nesse caminho entre os pinheiros.
       - O que estão procurando? – indagou Conan.
       - Sinais. Isto é, algo que mostre que Razek passou por aqui – explicou Erdon. – Galhos quebrados, por exemplo, ou plantas e flores pisadas. Eu não vejo nada, mas ele mencionou que vinha pelo Bosque das Abelhas, e Lear diz que pode senti-lo, então...
       - Eu não o sinto. Sinto alguém por perto. – Lear franziu o cenho. – E a sensação que tenho é que se trata dele, até por saber que Mestre Rydel vai pela trilha da montanha.
      - Sim, tudo bem, mas o que fazer se nada confirmar isso? – perguntou Erdon. – E se a gente não achar...
       - Pegadas? – perguntou Gareth, parado junto a um arbusto de espinheiros.
Foi como se um alarme houvesse soado. No instante seguinte, todos os seis estavam agachados junto ao arbusto, examinando a pegada nítida – porque deixada sobe uma parte mais macia do solo – em que se desenhava a marca de um pé ligeiramente maior que o de Conan. E o pé, sem sombra de dúvida, calçava um mocassim.
       - Razek? - Erdon se voltou para Lear.
      - Razek – confirmou o Encanta-Dragões, que acabava de se levantar e já empunhava o bastão de poder.
     - Estou achando esse pé meio pequeno – Lohan murmurou, mas ninguém lhe deu ouvidos. Logo adiante, Gareth havia localizado outras pegadas, impressões mais suaves dessa vez, que, no entanto, deixavam evidente a direção tomada por Razek.
       - É para lá que vamos mandar o nosso amigo peludo – disse Erdon, enquanto Lear se concentrava, olhando fixamente para o javali e apontando-lhe o bastão. – Para começar, é preciso formar um elo com o animal, não tão profundo como o que Mestre Kieran tem com as águias, mas uma espécie de caminho que a sua vontade deve seguir para controlar os passos dele. Não é lá muito fácil, mas Lear consegue por um tempinho, vejam só!
      Dizendo isso, ele apontou para o Encanta-Dragões, que entoava uma espécie de cântico em voz baixa enquanto movia lentamente o bastão para lá e para cá. Em poucos instantes, a cabeça do javali começou a oscilar de um lado para o outro, acompanhando o bastão, os olhos parecendo maiores e vidrados por força do encanto. Lear deu dois passos cautelosos para um lado, observou o animal por um momento, depois começou a caminhar em direção à pegada deixada por Razek. Hesitante a princípio, o javali o seguiu, o focinho sempre apontado para o bastão, depois para o solo, quando o Encanta-Dragões proferiu algumas palavras de comando.
       - Que língua ele está falando? – quis saber o Ruivo.
      - Os magos têm uma língua secreta, da qual a gente aprende o básico a partir do Segundo Círculo, com Mestra Lara. Quem sai daqui com a iniciação do Terceiro domina as palavras de poder e recitações mais simples, o resto pode-se aprender em Riverast ou com outros mestres que saibam – disse Erdon, mas se calou em seguida, lembrando da última conversa com Finn a respeito da Escola de Riverast. Nem ele nem Lear eram considerados aptos até aquele momento. Lear, porém, conseguiria se iniciar no Terceiro Círculo dentro de algumas luas, simples questão de justiça, pois nem mesmo o Carrasco punha em dúvida seu talento.
       Para a Magia... e a Arte também.
    O javali se demorou cheirando a primeira pegada antes de acompanhar o aprendiz às marcas seguintes. Fez a mesma coisa quando chegou a elas, enquanto Lear apontava para o bosque e pronunciava novas frases. Então, após alguns momentos de silêncio, ele encostou a ponta do bastão na testa do animal e ordenou, de forma que todos entendessem:
      - Vai!
     O eco de sua voz ainda vibrava no ar quando o javali disparou pela trilha. Lear o observou por um instante, depois se voltou para os garotos, sorrindo com um triunfo que cresceu ao ver a admiração em seus rostos. Conan e o Ruivo chegaram a bater palmas, e Lohan estava mudo e imóvel. Gareth também ficara impressionado, mas parecia refletir, e após alguns momentos se voltou para Erdon com uma pergunta.
       - O javali vai seguir o Razek ou simplesmente a trilha?
      - Melhor que isso. – foi Lear que respondeu. – O javali vai procurar e colar na pessoa que fez as pegadas. Não mandei que ele atacasse, é claro, mas o Razek vai pensar que o bicho é feroz e vai ficar maluco com ele andando à sua volta na trilha. Por outro lado, ele não tem arma, e além disso é proibido caçar na Floresta das Águias, então vamos ver como ele se sai. Que acham?
      - Isso! Faça a projeção de pensamento! – exclamou o Ruivo, com um entusiasmo ao qual os colegas prontamente aderiram. Não havia como ser de outro jeito, pois aquele era um encanto reservado aos mestres e a pouquíssimos aprendizes adiantados em Magia da Forma, e sempre figurava como uma das maiores atrações nos espetáculos da Ala Violeta. Lá, porém, a grande tela formada pela energia mágica de um ou mais praticantes exibia imagens criadas em sua mente – jogos de luz, dragões, pequenas histórias em sequência – ao passo que, desta vez, Lear lhes prometera algo real. Combinando dois encantos, ia buscar as imagens de Razek, onde quer que estivesse, e projetá-las na tela mágica, para que todos pudessem ver o Esquentadinho lidando com o javali. E, com certeza, dar mais risadas do que tinham dado, até agora, em todo aquele verão.
      Lear encontrou um espaço livre entre duas árvores e ergueu o bastão, desenhando algumas formas no ar, à altura dos seus olhos. Erdon não precisou explicar que estava criando os limites da tela. O Encanta-Dragões se concentrou, inspirando profundamente, e levou uma das mãos à testa, enquanto a outra segurava o bastão apontado para o espaço vazio. Um mago menos preocupado em fornecer um espetáculo o teria deixado assim, mas Lear tingiu sua tela de um violeta claro e translúcido, e os garotos grudaram seus olhos ali e ficaram à espera.
      Alguns momentos se passaram, momentos de tensão e expectativa em que o único som foram os murmúrios do Encanta-Dragões em sua busca. Erdon também estava concentrado, sua energia canalizada para o ponto sensível no centro da testa, pouco acima dos olhos, e dali projetada para o companheiro, ao qual, assim, emprestava um pouco do seu poder. O esforço o impedia de prestar muita atenção nos meninos, mas ele percebia que estavam ficando impacientes à medida que o tempo passava e nada aparecia na tela. Um deles – Conan, talvez – estapeou um mosquito que lhe pousara no braço, e outro começou a arrastar os pés, atrapalhando ainda mais sua já difícil concentração.
      Por fim, quando a tensão e a frustração dos garotos já se mostrava palpável, alguma coisa finalmente surgiu na tela: uma imagem de Razek, não tão perfeita quanto esperavam mas ainda assim bem nítida, que o mostrava agachado à beira de um lago cercado de pedras. Os meninos soltaram uma exclamação satisfeita e se mexeram, apertando-se uns contra os outros em busca da melhor posição para acompanhar a cena. O meio-elfo usava apenas os calções, que enrolara quase até os joelhos - Erdon se lembrou de ouvi-lo falar que a tribo da Floresta do Sol andava nua no verão – e talvez houvesse tirado também os mocassins, pois seus pés estavam mergulhados na água, assim como as mãos, que pareciam estar lavando ou limpando alguma coisa. Uma pedra? Um peixe?
         - Ele parece muito tranquilo – o Ruivo sussurrou pouco depois. – Cadê o javali?
        - Olha a cara do Lear – Conan sussurrou de volta, e diante disso Erdon também teve que olhar. O Encanta-Dragões continuava de pé, o bastão erguido, a mão livre parada num gesto que auxiliava na criação de formas. Estava imóvel, à exceção de um movimento quase imperceptível dos lábios, mas o que impressionava era a sua expressão. Parecia talhada em pedra, as faces em geral coradas agora muito pálidas, tensas com o esforço de controlar aqueles dois encantos que, no entanto, ele dominava muito bem desde o ano anterior. Isso deixou Erdon intrigado e teria chegado a preocupá-lo, não fosse o fato de sua atenção se voltar principalmente para a tela, onde a imagem estava mais borrada, mas se expandira para mostrar o cenário em torno de Razek.
       Troncos altos e espaçados, com copas altas. Grama verde salpicada de pedras cobertas de musgo, que iam ficando mais e mais numerosas à medida que se aproximavam do lago. Quatro meninos de pé, formando um semicírculo ao redor do aprendiz mais velho, que continuava a mexer na água. E, ao que se podia perceber... nenhum javali.
       - O que aconteceu? – perguntou Conan em voz alta. Erdon encolheu os ombros e se voltou para Lear, esperando que respondesse – mas em vez disso o Encanta-Dragões deixou escapar uma longa exalação e estremeceu dos pés à cabeça, ao mesmo tempo que as imagens e a própria tela se desfaziam num piscar de olhos. Os meninos soltaram uma exclamação de surpresa, a decepção perdendo importância diante da expressão confusa do rapaz.
       - Tem... Eu senti... Tem algum outro encanto interferindo – disse ele, após alguns momentos em que tentou recobrar o fôlego. – Alguém está usando Magia perto daqui. O mesmo tipo de Magia. E ela é... mais poderosa que a minha, pelo que senti.
        - Não é o Razek, é? – perguntou Erdon, para em seguida concluir: - Não pode ser, ele está longe. Aliás, mais longe do que pensávamos, ou pelo menos foi essa a minha impressão.
        - Sim, o javali não foi até ele, e... e ele não está nos arredores do Bosque das Abelhas – admitiu Lear, passando a mão pelos cabelos. – Aquele lago fica do outro lado da floresta. Mas vimos as pegadas, então... Não sei o que pode ter acontecido.
        - Vai ver que foi esse outro encanto – sugeriu o Ruivo. – Alguém pode ter descoberto o que você ia fazer e resolveu atrapalhar, para ajudar o Razek.
        - A Tarja, quem sabe – disse Conan. - Eles não são namorados ou coisa assim?
        - Ela não estava no Castelo – lembrou Gareth.
      - A Tarja? Ela não tem mais poder do que ... – começou Lear, mas um súbito ruído entre os arbustos o fez calar. No instante seguinte, o som de galhos estalando sob passos firmes levou os seis a se voltarem para o pequeno bosque de pinheiros, do lado oposto àquele pelo qual seguira o javali – e a sensação de Lear quanto ao poder que interferira em seu encanto foi confirmada assim que eles viram o homem que se aproximava pela trilha.

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Confus@? Eu ajudo. O conto começa aqui..
E termina aqui..

2 comentários:

  1. Parece-me que um certo aprendiz acabou de se meter em uma encrenca...

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    1. Pelo que sei do recém-chegado, todos os seis estão encrencados!

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