Um vento frio, cheirando a chuva e a montanha, agitava as folhas das árvores que cercavam o lago. Junto às raízes de um carvalho, um rapaz estava sentado, um meio-elfo de cabelos claros e espetados como pontas de lança. De costas para a trilha, catava vez por outra uma pedrinha no chão e a atirava no lago, não para fazê-la quicar, mas sim para que flutuasse e girasse continuamente no ar sem tocar a superfície da água. Até o momento, conseguira controlar quatro delas. Tinha jogado um pouco mais, porém duas ou três haviam caído – e o jeito como davam voltas no ar lembrava um número de saltimbanco, as raízes de boa parte da Magia praticada no Castelo das Águias. Essa era apenas uma pequena parte do que ele estava prestes a deixar para trás.
Tarja se aproximou sem ruído, carregando uma lâmpada a cuja luz podia observar o jogo. Gwyll não deu mostras de perceber sua presença. Sem se voltar, acrescentou mais uma pedrinha ao círculo, sustentou o movimento um pouco mais e inverteu-lhe o sentido, depois estendeu a mão espalmada, pronunciando algumas palavras em voz baixa. Uma a uma, as pedras abandonaram a ciranda e flutuaram até sua mão, e só depois de pegar a quinta ele se virou, sorrindo para a moça que o observava em silêncio.
- Oi – falou, soltando as pedrinhas.
- Oi – disse Tarja, e se sentou no chão ao lado dele, sem tocá-lo. Pousou a lâmpada com todo cuidado sobre uma pedra chata e encarou o rapaz, cujo rosto parecia ainda mais fino em meio ao jogo da luz com as sombras.
- Você sabe por que eu pedi que viesse – disse Tarja, respirando fundo. – Queria falar de nós antes que você fosse embora. Falar sobre o futuro – acrescentou, como se já não houvesse sido clara o bastante.
Gwyll assentiu com um gesto lento e desviou os olhos para o lago. Parecia estar procurando as palavras certas, embora já houvesse decidido o que ia dizer: nada diferente do que tinha dado a entender, em atitudes e conversas veladas, ao longo dos últimos tempos, e nada que a moça já não soubesse. No entanto, por alguma razão, ela precisava que ele o dissesse às claras.
- O futuro – começou Gwyll, ainda reticente. – O futuro que eu planejo para mim está em Riverast. Não por alguns anos, como para a maioria de nós, mas para décadas, talvez para toda a minha vida. E chega um ponto, como você sabe, em que o caminho de um mago se torna...
- Solitário – Tarja completou, sem esforço: era o que sempre ouviam quando se tratava dos Círculos mais altos da iniciação. – Eu sei disso, Gwyll. E entendo. Mas ao mesmo tempo suponho que você não se propõe a ficar só, a não se relacionar com ninguém até que chegue a esse ponto, então... se entre nós as coisas sempre foram tão harmônicas... pensei, por que não esperar que possamos ficar juntos, de novo, quando eu chegar a Riverast? Mesmo que acabe terminando depois de algum tempo. Você não disse isso, eu sei – acrescentou, antes que ele retrucasse alguma coisa. – Mas tem-se esquivado de mim, e... e uma coisa que nunca tinha feito antes... entrou no jogo dos garotos que ficam me empurrando para o Razek. Não sei o porquê disso agora, mas...
- Tarja – Gwyll interrompeu, olhos brilhantes cravados nos dela. – Ninguém empurrou você pra ele, para começar. Vocês é que voltaram a se aproximar depois daquela história com as árvores. E você tem estado com ele, tanto quanto comigo. Não venha me dizer que não.
- Digo, sim, porque não é do mesmo jeito – replicou a moça. – Eu gosto muito do Razek, isso é verdade. Gosto do que tenho com ele e não quero perder isso. Mas o que tenho com você também é bom, e eu não sei por que sou obrigada a escolher.
- Você não tem que escolher, Tarja. Eu escolhi – afirmou Gwyll, surpreendendo-a pela primeira vez. – Não vou dizer que foi pensando em você, e muito menos por causa do Razek. Na verdade, eu faria a mesma coisa se ele não existisse, mas fico feliz que exista porque... Ah, Tarja. – Calou-se, relanceando os olhos para o lago. – Eu gosto muito de você, mas nossos caminhos são diferentes. Quero seguir o meu sem me preocupar se estou deixando alguém para trás – alguém que talvez mude seus próprios planos por mim, e que eu terei de abandonar para ingressar no Oitavo Círculo. Ao contrário, quero que você siga em frente, passe o tempo que tiver de passar em Riverast e depois vá correr mundo, até que decida se estabelecer e começar sua família. É o que você quer, não é? Desde que a conheço, não está sempre falando nos seus futuros filhos?
- Que eu nem sei se vou ter! – replicou Tarja, perplexa. – Por que acha que eu tenho tantas certezas sobre o futuro? Aliás, como pode ter tanta certeza sobre o seu, ou pelo menos sobre o fato de que vai querer isso para sempre? Por que não vive um dia de cada vez?
- Porque não sou assim! – respondeu ele no mesmo tom, que misturava a surpresa e uma espécie de frustração. – Desde o início eu soube que queria os Círculos mais altos e estou trabalhando de acordo. Para que serve treinar sua vontade se você não tem um alvo bem claro? Veja Mestre Kieran, por exemplo. Desde bem novo – isso é segredo: Mestre Finn me contou, mas fica entre nós -, Mestre Kieran tinha visões sobre seu próprio futuro, no qual ele era casado e tinha um filho. As coisas foram acontecendo de forma a ele decidir que era isso mesmo que queria, uma família, então não se envolveu com ninguém em Riverast nos cinco anos que passou lá. Quando ainda era Mestre das Águias, ele voltou à Escola de Magia para a iniciação do Sexto Círculo, e de novo, quatro anos atrás, para a do Sétimo. Então, no inverno passado, ele recebeu uma carta do seu antigo mentor convocando-o para o ordálio do Oitavo Cìrculo, com muitas chances de ser aceito – e simplesmente declinou, porque pretendia se casar, embora não soubesse quando e nem tivesse ainda com quem. Na época, segundo Mestre Finn, muita gente disse que ele era um tonto, mas... Bom, você sabe o que aconteceu depois.
- Sim, claro. Ele achou alguém que se parecia com a mulher das visões, se apaixonou e foi correspondido – respondeu Tarja. – E, sim, é claro que o fato de ele estar esperando por isso há tantos anos trabalhou a seu favor; mas você não acha que as coisas poderiam ter dado errado? Mestra Anna não podia ter gostado de outro, ou acabar sendo morta por aquele monstro do Hillias, ou simplesmente não ter vindo para o Castelo das Águias?
- Ela poderia ter sido morta – admitiu o rapaz. – Algumas coisas não se tem como impedir, e Mestre Kieran sabe disso. Mas ele tinha toda a certeza de que encontraria a mulher por quem esperou durante tantos anos, e aposto que estava certo de que ela iria gostar dele, mesmo que a consciência não o tenha deixado influenciá-la. Porque é isso que acontece, Tarja, quando você dirige sua vontade para um objetivo. E é por isso que eu também sei que vou chegar aos Círculos mais altos. Sem desvios.
- Desvios – repetiu a moça, devagar.
- Isso. Não me entenda mal. – Gwyll estendeu as mãos, pousou-as nos joelhos dela. – Eu gosto muito de você, sempre vou gostar, quero mesmo que continuemos amigos. Mas não quero me envolver com você nem com ninguém. O que acontecer por prazer, ou por diversão, não será nada de que eu não possa me esquecer no dia seguinte. E no futuro pretendo abrir mão até mesmo disso, como Mestre Camdell.
- Você? – fez ela, incrédula. – O mesmo garoto que chamam de Herdeiro de Loki?
- Eu mesmo. E esse tempo já ficou no passado, em nome do meu objetivo. Enfim – completou, encolhendo os ombros. – Você entendeu como pretendo viver minha vida em Riverast.
- É. Eu entendi. – Tarja ergueu a cabeça, respirou fundo, depois soltou o ar pelo nariz, em pequenos haustos. – E, de coração, desejo boa sorte nessa sua escolha. Eu já devia ter entendido sem precisar desta conversa, mas foi bom termos falado.
- Foi sim – disse ele, mas agora parecia ansioso por concluir a conversa. – O que acha de voltarmos para o castelo antes que esfrie mais? E eu nem vou dormir muito, tenho que estar de pé à sexta hora para dar uma volta pela muralha com Mestre Kieran. Acho que ainda não decidiram de quem vou receber a espada.
- Tudo bem, vamos – concordou Tarja, erguendo-se sobre os pés, que estavam frios e um pouco dormentes. Não tinha mais o que dizer depois de todo aquele arrazoado de Gwyll. Se ele afirmasse que não queria dividir sua atenção com Razek – embora essa fosse uma ideia absurda: Razek sentia ciúmes de Gwyll, não o contrário – ou ainda se dissesse estar disposto a ter outras pessoas, outras experiências, então sim, talvez ela ainda tivesse por que argumentar. Mas contra aquelas frases cuidadosamente arrumadas, aquele muro de convicções atrás do qual se escondera seu namorado amável e brincalhão – contra todas aquelas certezas, o que ela ganharia em insistir?
Os dois se despediram com um leve beijo nos lábios e os votos, por parte dela, de que ele tivesse uma boa conversa com Mestre Kieran. Deveriam ter ido juntos até a torre, mas Tarja pretextou uma fome repentina para ir à cozinha, onde pão e frutas eram mantidos à disposição de quem trabalhasse até tarde. Gwyll falou em esperá-la, mas – ele também não sabia o que dizer – concordou bem rápido em subir direto para o quarto, uma vez que teria de se levantar em poucas horas.
Tarja ficou no corredor por uns momentos, segurando a lâmpada acesa, depois deu meia-volta e subiu para o dormitório por outra escada. Cruzou uma passagem entre dois corredores e se dirigiu à porta de Razek, mas antes que pudesse bater – o que ela ia fazer por impulso, na sequência dos passos que a tinham levado até ali – uma voz soou dentro do quarto, narrando uma experiência malfadada no laboratório de alquimia. Era uma voz de rapaz, mais para grave e de timbre agradável... e não era a de Razek, mas sim a de Padraig, seu colega de quarto. O meio-elfo também disse alguma coisa, momentos depois, mas a moça já havia se afastado da porta. Não fazia sentido entrar no quarto onde estavam os dois. Ela hesitou por um instante, calculando o tempo que Gwyll devia ter levado a subir e as possibilidades de haver reunião em seu quarto, depois deu de ombros e se encaminhou à escada que conduzia à torre.
A porta de Gwyll e Lear estava fechada, mas a voz abafada de um deles podia ser ouvida lá dentro. Tarja não esperou para saber quem era. Em vez disso, entrou em seu próprio quarto, segurando a lâmpada de modo a não deixar que a luz incidisse sobre o rosto de Vergena, cujas formas se adivinhavam sob as cobertas. Supunha que a elfa estivesse dormindo, mas, quando regressou pé ante pé da casa de banho, foi surpreendida pelo par de olhos brilhantes que a fitavam numa interrogação.
- Acho que era aquilo mesmo – disse Tarja, encolhendo os ombros. Havia desalento em sua voz, mas – ela mesma percebeu – menos do que esperava. Vergena teve um daqueles seus sorrisos sérios. Sem desviar os olhos da amiga, ergueu um lado da manta, e Tarja deslizou para se aninhar no espaço vazio ao seu lado. A mão da elfa lhe afagou os cabelos e ela fechou os olhos, sabendo, em seu coração, que esse silêncio lhe faria mais falta do que toda a eloquência de Gwyll.
Continua...
Parte 4
Parte 6
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