quinta-feira, 24 de julho de 2014

O Passo Além do Círculo - Cap. 6 : Um Piquenique, uma Carta e uma Notícia de Arrasar



       Um desjejum em companhia de Finn, o simpático mestre de Magia da Forma, era sem dúvida uma ocasião menos temível do que estar diante dos Sete na sala de reuniões. Ainda assim, Lear teve uma noite difícil, na qual, além de ter custado a pegar no sono, teve sonhos tumultuados e acordou pelo menos meia dúzia de vezes. Por fim, já pelo meio da madrugada, o cansaço o fez mergulhar num sono mais pesado, do qual só acordou com as pancadas fortes de Irena à sua porta.
       - Menino Lear, não tinha que estar de pé à sexta hora? Há quanto tempo o sino tocou! – A voz aguda, sem cerimônia, da criada que o conhecia desde os dez anos de idade. – Pule da cama e vá encontrar os mestres, ande! Que vexame!
       - Calma, Irena, estou indo! – Um olhar para a janela, um sobressalto: se já não eram sete horas, faltava pouco. Lear se vestiu a toda pressa, jogou o manto sobre o ombro e saiu quase voando, passando por Irena, que sobraçava uma cesta de vime cheia das trouxinhas de meias e camisas sujas deixadas à porta pelos aprendizes. Tão rápido quanto pôde, fez suas abluções na casa de banho e ajeitou o cabelo diante do espelho, franzindo o cenho ao ver os pelos castanhos que despontavam em seu queixo e acima do lábio superior. Era constrangedor apresentar-se para um encontro como aquele sem ter feito a barba.
       Ainda prendendo o manto, ele atravessou um longo corredor, no interior da Ala Branca, para depois cruzar o pátio que dava acesso à Amarela. Fazia um bom tempo que não ia lá, porque as aulas de Sagas e Princípios da Magia tinham cessado no Segundo Círculo, e a Magia dos Nomes era estudada na Ala Azul pelos aprendizes do Terceiro. A própria imagem que guardava do lugar tinha sido alterada pelo tempo – e assim, ao entrar no jardim da ala, o Encanta-Dragões se surpreendeu ao achá-la ainda menor do que se lembrava.
        Provavelmente ainda não eram sete horas, mas Lear se congratulou consigo mesmo por ter vindo cedo, uma vez que Mestre Finn já se encontrava à sua espera. Estava bem agasalhado contra o frio, os cabelos como sempre alvoroçados, sentado de pernas cruzadas sobre uma grande toalha onde também fora disposto o desjejum. Havia uma cesta grande com pães, um prato com frios e queijos, uma travessa com frutas e outras com bolinhos de canela; havia mel, leite e uma jarra de cerveja fraca, além de canecas e talheres que – Lear notou com certa apreensão – não eram para duas e sim para quatro pessoas. Por um momento ele fantasiou – e temeu – que os outros comensais fossem Thalia e Kieran, justamente os que a princípio poderiam se opor a sua ida para Riverast; mas Kieran devia estar nas muralhas com Gwyll, e as duas mulheres que, momentos após sua chegada, saíram de uma porta aberta para o jardim não se pareciam com a Mestra de Princípios da Magia.
       Mais uma vez, ele tivera sorte.
       - Bom dia, Lear. Faz algum tempo que não nos falamos, não é? – perguntou Lara, a mestra de Magia dos Nomes, com seus modos discretos. Anna de Bryke vinha atrás dela, com um prato coberto na mão e uma sacola de pano a tiracolo. As duas se acomodaram ao redor da toalha, trocando cumprimentos com Finn e elogiando o aspecto da comida enquanto Lear se esforçava para controlar sua ansiedade.
       - Vocês não começaram ainda, certo? – perguntou Anna, sem que o rapaz soubesse se falava da conversa ou do desjejum. – Eu trouxe um doce de amêndoas e mel que fiz ontem à tarde, mas só sobrou um para cada; o trabalho mágico do Kieran não exige que ele se prive dessas guloseimas.
       - E você não toma cerveja. Não precisávamos ter trazido – disse Finn, olhando significativamente para Lear. O rapaz franziu a testa, buscando o sentido daquelas palavras, mas suas conjecturas foram interrompidas por Lara, que lhe oferecia uma caneca de leite. Seus dedos eram tão finos que mal pareciam sustentar o peso da caneca cheia, por isso ele se apressou a pegá-la, pensando, enquanto bebia, na história que corria na Ala Branca acerca de um antigo romance entre Lara e Kieran. Os dois teriam se envolvido em Scyllix, quando ela ainda era casada com o mago e mestre de combate Hillias, e encerrado o caso no barco que os trouxera a Vrindavahn, portanto muito antes de Kieran ter sequer ouvido falar sobre Anna; mas o mais curioso - pensou Lear, relanceando o olhar de uma para a outra – era o fato de que, à exceção de serem ambas versadas em sagas, não tinham nada em comum. Lara era frágil, tinha cabelos claros e pele quase translúcida, enquanto a morena Anna tinha um aspecto sólido, com ossatura larga e dedos de arqueira. Não era tão bonita quanto Lara, embora não fosse nada feia; sem dúvida combinava bem melhor com Kieran, que passara a juventude como soldado e devia gostar de mulheres fortes. Isso, ou a teoria de Urien, para quem as origens camponesas do antigo Mestre das Águias o faziam preferir as moças de ancas largas, capazes de dar à luz uma dúzia de filhos.
       Urien sempre tinha uma boa tirada.
       - Pensei que estivesse preocupado, Lear – comentou Finn, servindo-se de um pedaço de queijo. – Mas pelo jeito me enganei. Você não para de sorrir enquanto olha para Anna.
       - O quê? Eu não... – gaguejou Lear, trazido bruscamente de volta à sua presente e aflitiva condição. – Eu não estava olhando para ela... quer dizer, talvez sim, mas...
       - Quem sabe estava se perguntando o porquê de eu estar aqui – a Mestra de Sagas veio em seu socorro. – Isto é, além do fato de meu marido ter saído cedo e me deixado sem companhia para o desjejum.
        - A verdade é que chegamos a uma conclusão a seu respeito – disse Finn, agora num tom bem mais sério. – Duas conclusões, para ser exato, mas isso não é tudo; e eu sugiro que se prepare, meu rapaz, pois terá de tomar uma decisão que pode mudar completamente a sua vida.
        - Uma... uma decisão? – Lear pousou a caneca sobre a toalha, bem devagar, sentindo todo o seu sangue afluir às faces. – Mas eu pensei que fosse o senhor... quer dizer, que fossem os mestres, como um grupo, que decidissem tudo...
         - Sei ao que está se referindo, e sim, a decisão a esse respeito é nossa. Mas um caminho se abriu à sua frente, assim como aconteceu com Nardus e Vergena, e é você que deve escolher segui-lo ou não. Anna e Lara podem ajudá-lo nisso, e esta é a razão de estarem aqui. Mas essa é a última parte. Antes de tudo, tenho duas notícias a lhe dar, e quero que escute com atenção. Você está pronto?
         Lear engoliu em seco e assentiu. Os mestres se entreolharam, fazendo acenos entre si como se recordassem um código ou uma sequência de falas. Então, voltando-se outra vez para o aprendiz, Finn começou:
         - O que falei sobre a cerveja tem fundamento: você deve se manter em trabalho mágico, pois lhe darei sua espada no ritual do solstício. No entanto – emendou, antes que o maravilhado Encanta-Dragões soltasse uma exclamação de alegria -, lamento dizer que não podemos recomendá-lo aos mestres de Riverast. Não por enquanto. E é aí que entra algo com que nenhum de nós contava.
       Calou-se, tomando fôlego, ao mesmo tempo que observava a reação de Lear. O aprendiz estava em silêncio, os lábios entreabertos, tentando – e por enquanto não conseguindo – dizer alguma coisa que traduzisse aquilo que sentia. Em uma fração de momento, ele saíra de uma onda de euforia para uma decepção brutal, não totalmente inesperada, era verdade, mas com a qual não estava preparado para lidar. Acabrunhado, ele sacudiu a cabeça e olhou para Finn como se implorasse, embora desta vez não houvesse como se iludir acerca de uma segunda chance.
       Seu destino fora selado.
       - Sinto muito que seja assim. A decisão de promovê-lo ao Terceiro Círculo foi unânime, é bom que você saiba, mas concluímos que não valeria a pena propor seu ingresso na Escola de Magia. Nós...
       - Por que o “nós, mestre? Sei que não foi o senhor – interrompeu Lear. – O senhor queria que eu fosse para Riverast, não queria?
       - Mas é claro, meu rapaz! Nenhum de nós tem a intenção de prejudicá-lo! – Finn estendeu a mão por cima das travessas, pousou-a sobre o punho trêmulo do aprendiz. – Na verdade, todos concordam que poderia tentar ser aceito, mas alguns, baseados no que conhecem sobre a Escola, acham melhor que não o faça ainda; que teria mais chances, e aproveitaria mais sua estada lá, se praticasse durante dois ou três anos. No fim, essa ponderação venceu, e acabou ganhando força quando recebi a solicitação de um antigo colega.
        Dizendo isso, ele pegou um grande envelope, lacrado de verde - estivera a seu lado o tempo todo, mas Lear não o notara -, e tirou de dentro uma folha de elegante papel de linho. Trocou um novo olhar com as duas mestras, que o encorajaram em silêncio, e deu um leve pigarro antes de prosseguir.

   Continua...

    Parte 5


    Parte 6,5

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