domingo, 8 de março de 2015

Depois da Invasão (Parte 2)



A chuva as alcançou um pouco antes de chegarem ao povoado. Pelo caminho, viram os homens de que Anna havia falado, soldados regulares de Siberlint, mortos um ou dois dias antes em seus uniformes verdes. Kyara se agachou para observar a grama pisada ao seu redor. Ou muito se enganava ou as pegadas eram de camponeses.
- Já houve gente por aqui. Pessoas do povoado – disse, mais otimista. – Estão conseguindo ir e vir, o que é um bom sinal. Mas temos que ter cuidado mesmo assim.
Anna assentiu, em silêncio, e continuou a andar. Avançava sem dificuldade, mas às vezes fazia uma pausa, levando a mão ao ventre como se sentisse pontadas de dor. Kyara a amparou, enlaçando-a pela cintura, e foi assim que entraram no povoado.
A visão das primeiras casas bastou para que soubessem o que acontecera. Estavam arrasadas, muito mais que a cabana do guarda-caça, que pelo menos continuava de pé. Ali, no povoado, metade dos tetos fora queimada e várias casas tiveram paredes postas abaixo, revelando o interior sombrio e dilapidado pelo ataque. As galinhas, patos e outras aves domésticas que costumavam ciscar na frente das casas tinham desaparecido, restando apenas um cão, que latiu à aproximação das duas.
- Valha-me Deus! É a elfa com a filha! – bradou uma mulher, aparecendo à porta. Um velho saiu de trás da casa vizinha, seguido por uma moça que carregava um bebê. Logo, três dezenas de pessoas estavam na rua, quase todas mulheres e crianças que fitavam Kyara com um misto de surpresa e temor.
- Ela está machucada – sussurrou uma menina para a mãe. – Os soldados devem ter ido à casa dela.
- Foram mercenários – disse Anna, em voz alta. Conquistou alguns acenos de compreensão, mas isso foi tudo. Ao contrário de Kyara, que após trinta anos ainda era conhecida como “a elfa do Raymond”, a moça costumava acompanhar o pai nas visitas ao povoado, e, embora ele fosse um estrangeiro e ela meio-humana, tinham conseguido fazer algumas amizades. Era de se esperar que essas pessoas, ao menos, lhes estendessem a mão.
A não ser que estivessem em situação ainda pior.
Kyara percorreu o grupo com os olhos apertados. A maior parte das pessoas não estava ferida, mas todos tinham um aspecto lamentável, ali, sob a chuva fina, com as roupas e os cabelos chamuscados e os olhos fundos. As moças e mulheres mais novas estavam cabisbaixas, como se sentissem vergonha. Kyara franziu o cenho ao ver Ethel, a amiga de Anna, com um lábio partido e um hematoma na maçã do rosto, que ela tentava esconder no ombro da mãe. Quando tudo começou, Ethel era uma garota alegre, recém-casada com Hansel Ferreiro. Jovem e forte, ele fora convocado para as tropas do Barão, que marcharam para o Norte a fim de se juntar às de seu suserano, o Jarl de Pengell. Com sorte, podia estar vivo, mas não se achava ali para defender Ethel ou ao menos confortá-la depois que o horror acabasse. Era assim a guerra.
- Eu sinto muito. – Alguns rostos se franziram em surpresa: não se lembravam de ter ouvido a voz da elfa em outra ocasião. – Lamento pelo que aconteceu com vocês e com suas casas. Mas não podem se deixar abater – prosseguiu, sem tomar fôlego. – Há quanto tempo os soldados se foram?
- Há dois dias e meio – respondeu o velho Wilf. Ele fora o melhor camarada de Raymond, um fazendeiro já na casa dos setenta, mas ainda robusto. Por seu intermédio, Kyara soube que o povoado fora arrasado numa única manhã e os de Siberlint haviam ficado com tudo que era de valor. Ao contrário do que ela pensava, porém, não eram eles os mortos do caminho, e sim um segundo grupo, que fora surpreendido pelos homens-de-armas do Barão. Isso ocorrera muitas horas depois da partida dos invasores.
- Então o socorro veio, mas tarde demais – concluiu Kyara. – Eles fizeram alguma coisa por vocês?
- Eles nem tinham vindo nos socorrer. – Wilf torceu os lábios, como se aquilo o enojasse. – Vinham requisitar víveres, como se ainda tivéssemos de sobra. Mas é claro que teria sido preferível enviar o resto do grão e dos animais para o castelo do que perder tudo para aqueles bastardos do Norte.
- E não sobrou mesmo nada? Nenhuma comida? – insistiu Kyara.
Wilf cerrou a boca com força e olhou para sua mulher, que torcia as mãos. Outras pessoas se entreolharam com ar desconfortável, mas ninguém disse nada. Kyara cruzou os braços, impaciente, e ia repetir a pergunta quando finalmente uma mulher falou.
- Algumas famílias conseguiram esconder um pouco de comida. – O tom era seco, quase de desafio. – Quem tem, dá aos filhos. Não a estranhos.
- Nós não somos estranhos – rebateu outra mulher. – E aqui há crianças com fome.
- Quem tinha para onde ir deixou o povoado – disse o velho Wilf. Kyara assentiu, lembrando-se das pegadas que vira no caminho, perto dos soldados mortos. Deviam ser dos aldeões que tinham partido.
- Se o Barão não vai ajudar, nem há como ir embora, é preciso tocar a vida de algum jeito – disse ela, e olhou para a mulher que falara em primeiro lugar. – Você guardou comida e deve repartir com os outros. Vocês também – prosseguiu, erguendo a voz para o grupo. – Antes da guerra, aqui viviam trezentas pessoas, e sei que algumas eram pobres e outras mais abastadas. Agora há pouca gente e todos devem ser iguais. É o que têm a fazer para passar pelos tempos difíceis.
- É mesmo! – apoiou a que falara sobre as crianças. A primeira baixou a cabeça, com as faces vermelhas, enquanto os demais se limitavam a olhar uns para os outros. Kyara respirou fundo e pegou a mão de Anna, preparando-se para partir. Não parecia haver nada para elas no povoado.
- Boa sorte – disse, e começou a dar meia-volta.
- Espere! – exclamou a esposa de Wilf. – Onde vão? Também precisam de ajuda!
- Vocês já têm muitas bocas para alimentar – retrucou a elfa. – Não podem cuidar de mais duas.
- Bobagem! Raymond era guarda-caça do Barão – disse o velho fazendeiro. – Era um dos nossos, e morreu defendendo o castelo. A mulher e a filha dele são bem-vindas.
- Venham para nossa casa – convidou Ethel, timidamente. – Posso emprestar um vestido para Anna. E ainda restam verduras e nabos na horta.
- Você tem certeza? Nós poderíamos nos arranjar na floresta. Na primavera, vive-se bem com o que se tira de lá – disse Kyara, sem perceber o brilho que suas palavras provocaram em três pares de olhos.
- Não, não. Venham conosco – disse a mãe de Ethel. Anna lançou um rápido olhar a Kyara e avançou para o lado da amiga. A elfa hesitou por um momento, depois encolheu os ombros e assentiu. Seria bom, para as moças, estarem juntas e consolarem uma à outra.

(Continua...)

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