sexta-feira, 17 de junho de 2016

A Ilha dos Ossos: prólogo do livro 2


     No equinócio de outono eu me tornei o mais feliz dos homens.
     Eu me lembro dos ritos, realizados na floresta. Entardecia quando fomos escoltados até a clareira, Anna pelas mulheres, eu pelos homens do Castelo das Águias, que, segundo a tradição, iam tentando nos convencer a voltar atrás. À minha prometida disseram que eu era mau, que era rude e que só me importava com o trabalho mágico. Isso a fez rir, embora pelo menos uma dessas coisas fosse verdade. Já eu ouvi todo tipo de asneira e não achei graça, a não ser em um momento: quando Algias, o matemático, afirmou que Anna falava demais e eu nunca voltaria a ter um instante de silêncio. Foi a única advertência sensata.
     Nesse momento eu já estava diante de Camdell, o Mentor da Escola de Artes Mágicas, que usava o traje vermelho de oficiante. Anna chegou quase ao mesmo tempo. Ainda ria das últimas brincadeiras, mas seus olhos brilharam como estrelas assim que ela me viu. Avancei e ia pegar sua mão quando Urien, o mestre de Música, bradou às minhas costas:
     -- Ela é boa demais para você, Kieran!
     A frase soou alta e límpida em meio à clareira. Indignado, cheguei a cerrar os punhos, mas logo vi que não havia como reagir. Fazia parte do jogo – e já que era assim respirei fundo, ignorei Urien e sua provocação e me voltei para receber a mulher com quem sonhara durante tantos anos.
     A cerimônia foi rápida e simples. Trocamos votos, depois anéis, que eu gravara com um padrão de folha de teixo. Camdell atou o laço em volta de nossas mãos e nos fez comer do mesmo pedaço de pão de fruta, e, enquanto eu ainda lutava para engolir o bocado seco, anunciou que estávamos unidos pelo prazo de um ano e um dia. Então, a festa de verdade pôde começar. Havia música, que não cessou um só instante, comida e bebida suficiente para que todos ficassem alegres. Eu também, a ponto de dançar ao redor do fogo com os aprendizes. Encorajados, alguns rapazes fizeram piadas sobre as noites atarefadas que eu teria a partir de agora, e eu ri, porque, embora fossem uns moleques cheios de vento e de vinho, dessa vez eles tinham razão.
     À luz das fogueiras, as moças continuavam a dançar. Anna estava entre elas e fiquei a observá-la, meu sangue cada vez mais quente até que parei de resistir e a tirei do círculo. Sem olhar para trás, voltamos à nossa torre no Castelo das Águias e fizemos amor ouvindo ao longe os ecos da festa. Lembro-me do que dissemos um ao outro, de todas as promessas, e acima de tudo me lembro de ter pensado que a tradição nos levara a tomar uma precaução inútil. Devíamos ter proferido os votos definitivos, pois nada poderia nos separar, nem ao longo de um ano e um dia nem pelo resto de nossas vidas.
     Era o que eu acreditava naquela noite. E continuei a acreditar enquanto o outono avançava, seguido pelo inverno, com dias cada vez mais frios e noites de tempestade.
      Agora, diante da janela, eu contemplava a tarde de primavera enquanto apertava a carta em minha mão. O vento já tentara arrancá-la, e eu mesmo, por um momento, brincara com a ideia de abrir os dedos e deixar que aquelas palavras voassem para longe. Mas não podia. Tinha que enfrentá-las como o que eram, por mais que isso me custasse, e eu sabia que custaria caro. Ao mesmo tempo, sabia que iria até o fim, e essa certeza me tornava mais forte.
      Pensando bem, eu já não tinha quase nada a perder.

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