sexta-feira, 21 de abril de 2017

Além de Agora: um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 10)



-- Bom -- disse Aymon, após algum tempo --, eu não estava mesmo pensando em fazer nenhum espetáculo.
-- Nem eu -- disse o músico.
-- E eu também não -- falei, levantando-me para sair. -- Vou mudar de roupa, dar um pulo até a casa de Tina, e depois podemos nos encontrar na Praça do Conselho. Seria bom estarmos todos juntos na hora em que Édobec for levado para o patíbulo.
-- Também acho. Ei, e por que é que você vai à casa de Tina? Ela não o deixou falando sozinho ontem à noite?
-- Sim, mas hoje é possível que já esteja mais calma -- respondi, embora não acreditasse muito nisso. -- Não me custa fazer uma segunda tentativa.
-- Ah, é? Pois eu, no seu lugar, faria pé firme -- tornou Thierry. -- Se está mesmo mais calma, ela que procure você e encontre um jeito de fazer as pazes. É, é isso mesmo! Mulher, a gente tem que tratar assim, senão elas se sentem as maiores... E, quando acaba, é um custo pegar as rédeas outra vez!
Naturalmente, eu não partilhava dessa opinião, e Thierry sabia muito bem disso, mas a provocação sempre fez parte da nossa amizade. Naquela manhã, contudo, eu não estava com espírito para essas coisas, por isso não retruquei, limitando-me a lembrá-los do nosso encontro de logo mais. Ainda pude ver a expressão perplexa de ambos antes de sair. Era raro, muito raro que não me prestasse a entrar na brincadeira.
O sol já brilhava com intensidade quando voltei para casa. Tomei um banho rápido e frio e estava começando a me vestir quando, com uma timidez que eu jamais esperaria dele, Mandol chamou por mim do outro lado da porta.
-- Eu vi você chegar sozinho -- disse ele, depois de pigarrear algumas vezes, como se receasse me incomodar. -- Posso entrar um pouco? Eu não demoro, é só... Só um instante antes de você sair.
-- É claro, Mandol! Entre -- disse eu, e ele abriu a porta, com gestos tão relutantes quanto as palavras. Àquela altura, eu já estava meio arrependido pelo que dissera na noite anterior, e minha culpa aumentou mais ainda quando, sem nem pensar em me recriminar por aquilo, foi Mandol o primeiro a dizer que lamentava haver interrompido um encontro tão especial.
-- E por uma razão como aquela, ainda por cima -- disse, meneando a cabeça. -- Imagino o que a moça não terá pensado. Se pudesse voltar atrás, Cyprien, eu juro por Deus, eu nunca teria chamado você daquele jeito. E nunca teria ficado com Alfonz enquanto aqueles dois saíam. Oh, mas nunca! Nem esperei para dizer isso a eles quando chegaram das tavernas.
-- Ah, então foi isso -- murmurei, compreendendo tudo. -- Não foi de mim que você reclamou quando Pippo e Ariela voltaram.
-- De você? Oh, não! Reclamei deles mesmos -- dela, especialmente, que não se preocupou em chegar mais cedo, quando sabia que não tenho prática em lidar com crianças. Mas na verdade -- acrescentou, ruborizado --, se quer saber, a culpa foi minha, quando me ofereci para ficar com ele. Eu não esperava que ela aceitasse. E menos ainda que Pippo fosse apoiá-la, deixando o próprio pai metido naquela enrascada.
-- Não é uma enrascada assim tão grande -- repliquei, ao que Mandol teve um gesto de aborrecimento. Sorri, lembrando-me de como ele costumava recriminar sua mulher por deixar que eu cerzisse os rasgos da minha própria roupa. Agora, ele se acostumara a me ver fazer coisas como essa, mas não as considerava coisas de homem, embora soubesse que eu não era menos homem do que qualquer outro. Fora Rowenna que me obrigara a aprender aquilo. Para ele, essa era a única explicação possível no meu caso.
-- E agora você vê -- disse Mandol, em tom de desabafo. -- Antigamente, Pippo sempre acatava minha palavra, e isso até depois de ter se tornado adulto. E agora, só porque se casou, ele acha que é o chefe da família, e eu sou um traste velho que não serve mais para nada. Bom, talvez seja isso mesmo -- prosseguiu, sem ligar ao meu protesto. -- Já não sou o que era antes, principalmente depois que Douna se foi. Você se lembra dela, Cyprien?
-- Lembro, Mandol. Como poderia ter me esquecido?
-- Pois é. Ninguém esquece uma mulher como Douna. Com ela, sim, um homem se sentia respeitado! E olhe, eu bem que merecia -- acrescentou, com os olhos brilhando. -- Eu era capaz de tudo nos meus bons tempos. Eu já lhe disse por que vim viver aqui?
-- Disse -- confirmei, sem enumerar o total de vezes.
-- Ah, foi? Mas não devo ter contado com todos os detalhes. Bem, para não atrasar você, só digo que enfrentei aquele juiz, frente a frente, rodeado de soldados, e me recusei a entregar meus camaradas. Quando me emboscaram, mandei três para o Inferno, e teria mandado ainda mais se a família não me convencesse a partir de Faglan. Eu não queria, é claro -- não queria que eles pensassem que eu estava fugindo --, mas havia a mulher e o filho, eu não podia lhes faltar, ou quem sabe até expor os dois a alguma vingança. E aí me lembrei daquele flautista de Pwilrie, sempre me convidando para uma visita, e vim para cá; e no fim a gente acabou ficando com a casa dele. Esse também era um camarada e tanto... Mas você não lembra, ele morreu antes de você nascer. Foi na revolta liderada por aquele caolho, Haney o Audaz, que eu conheci pouco, mas tinha em boa conta, ao menos como lutador. Ele era como você, usava tão bem a direita como a esquerda, e não havia quem lhe tirasse a espada da mão. Seu único defeito era ser precipitado. Precipitado e azarado, pois veja como ele acabou. Estatelado no meio do pátio. E aquela revolta, eu sabia que não ia dar certo. Era cedo demais para tentar uma coisa daquelas. Foi por isso que eu fiquei de fora -- porque, você sabe, eu queria fazer alguma coisa para ajudar o Povo Alto. Não é o meu povo, mas é a gente que me acolheu. E eu teria feito alguma coisa... Se houvesse outros movimentos, mais sérios, melhor planejados, no tempo em que eu podia falar de mim mesmo como de um guerreiro.
Calou-se, respirando fundo, parecendo ainda mais velho depois do discurso. Fitei-o com os olhos cheios das lágrimas que ele jamais me encorajara a deixar fluir. Homem não chora, sentenciava, quando eu começava a me queixar de meu padrasto. Ele jamais interferira em nada, nem nas surras, nem nas injustiças, mesmo depois de eu haver me tornado seu aprendiz. No entanto, quando Gontran passou dos limites, foi Mandol o primeiro a se erguer em minha defesa.
-- Você ainda é um guerreiro. -- Suavemente, pousei a mão em seu braço, e não me importei quando ele se retraiu. -- Você nos ensinou a lutar, Pippo e eu -- nos ensinou tanta coisa, Mandol. Eu vou ser grato a vida inteira, a você e a Douna, por tudo que fizeram desde o início. E, se às vezes parecer me esquecer disso... Bom, Rowenna sempre diz que a gente costuma brigar justamente com as pessoas de quem mais gosta.
-- Oh! E então eu não sei? -- fez ele, com um sorriso triste. -- Mas, apesar das brigas, nunca achei que você fosse ingrato. Pelo contrário, faz até muito por nós, como se fôssemos realmente a sua família. E você sabe, lá no fundo, é assim mesmo que nos sentimos. Uma família. É por isso que às vezes acabamos sendo importunos. Mas isso vai mudar -- garantiu, recuperando um pouco da energia habitual. -- Vou falar com aqueles dois -- Ariela, principalmente -- e dizer que tenham mais cuidado. Você é um homem feito, tem que viver sua vida, não podem lhe pedir que passe suas noites cuidando de um pirralho. De mais a mais...
-- Mandol - interrompi, sorrindo --, foi você quem me pediu para ajudar com o Alfonz. Você, e não Ariela -- está lembrado?
-- Ah! Mas de quem é que foi a culpa? -- exclamou ele, triunfante. -- Foi dela, não foi? Uma mãe que se preza não deixa um filho pequeno para ir dançar nas tavernas. Eu disse isso ontem, e vou dizer de novo, quantas vezes for preciso. Pode ficar tranquilo daqui para a frente.
-- Está bem, Mandol -- disse eu, esforçando-me por dar alguma seriedade à minha voz. Naturalmente, eu estava aliviado por ver que a briga não deixara marcas, mas era difícil disfarçar o riso quando ouvia aquilo. Mandol podia não ser o mesmo que eu conhecera na infância, podia até estar um pouco mais brando, mas algumas coisas nunca mudariam. Ariela, por sua vez, não iria aceitar tão facilmente as palavras do sogro.
E por estranho que pareça, a perspectiva daquelas brigas me fazia sentir como se houvesse voltado para casa. 

*****

Parte 1
Parte 9

Parte 11

Conheça O Jogo do Equilíbrio, novela em que Cyprien já está em outra fase da vida.

Saiba mais sobre o personagem clicando aqui

Nenhum comentário:

Postar um comentário