O fio de lã torcida estava disfarçado por folhas tão vermelhas como ele, mas mesmo assim visível a olhos atentos. Estava amarrado a um galho baixo, como um lembrete – um jeito de marcar uma trilha, de não se perder, como todas as crianças da tribo eram ensinadas desde cedo. Só que nenhuma criança da tribo, ao que ela se lembrava, usava aquele fio vermelho para amarrar as tranças ou costurar as roupas, a não ser aquela que Kyara conhecia tão bem.
Anna...! O que ela podia estar fazendo ali?
Como um mapa que brotasse da terra, os caminhos da floresta se desenharam na mente de Kyara. A trilha onde as crianças faziam coleta ficava longe, não se ligando, de forma alguma, ao Passo das Lebres. Anna teria visto alguma coisa que a assustou, fazendo-a fugir? E, se tivesse sido isso, por que não correra para junto da tribo e sim na direção oposta? E os outros – Tyshen, Lila, o pequeno Torak, que andava atrás de Tyshen e ecoava tudo que ele dizia – estariam com ela?
Aflita até os ossos, mas tentando manter a calma da qual tudo dependia, Kyara procurou os rastros dos pequenos pés calçados em mocassins. Nada: a chuva os tinha lavado, como lavara as pegadas deixadas pelo homem a partir dali. Ela se ergueu de novo, torcendo as tranças encharcadas, e tentou pensar. Anna talvez houvesse corrido sem ver para onde, mas depois se detivera para amarrar o fio, e isso era bom sinal: o que quer que a tivesse assustado acabara se distanciando, ao menos por algum tempo. Os outros também deviam estar bem, mas o provável é que estivessem todos perdidos, ou no mínimo confusos quanto às direções. Não costumavam vir para aqueles lados da floresta. Kyara caminhou ao redor da vereda, tentando achar mais sinais, e, não os encontrando, decidiu-se pelo caminho mais visível, o que ela teria seguido se fosse uma criança andando na chuva. O que mais poderia fazer?
Ajude-me, Lobo. A elfa se dirigiu ao Espírito que protegia sua Casa. Que Anna e os outros estejam em segurança, e que eu possa encontrá-los, ou que eles encontrem o caminho de volta. Sua voz era apenas um murmúrio, quase sumindo nas palavras finais ao se lembrar de como, anos atrás, ela fizera uma prece muito semelhante. Pedira ao Guardião que a ajudasse a achar o cervo que vinha rastreando, apesar da nevasca que a alcançara no caminho, apesar do cansaço de dois dias sem dormir e de estar fora do território da tribo. Em vez do cervo, porém, tinha encontrado aquela cabana, e nela estava Raymond de Pwilrie com seus olhos negros e belas mãos fortes. E dessa noite em diante sua vida nunca mais fora a mesma.
Kyara sacudiu a cabeça, espadanando água para os lados. Tinha de se concentrar no que importava, em achar Anna e as outras crianças e deixá-las a salvo antes de voltar a rastrear o caçador humano. A trilha que seguia, porém, era uma entre várias possíveis, e nada, a não ser sua intuição, garantia que fosse a certa. Ela se deteve, pensando em Lontra, que teria simpatia por uma avó em busca da neta, em Corvo, que mostrava novos caminhos, mas, acima de tudo, pensando sempre e ainda com mais força em Lobo. Precisava dele, e as crianças também, para que lhes desse coragem. Como elas deviam estar, pequenas, ainda inexperientes, perdidas em meio àquela chuva e com um homem andando pela floresta?
E de repente, como se o Guardião lhe desse um sinal, o som de uivos ecoou no ar. Ecoou por toda a floresta, rolando sobre as copas das árvores, mostrando-lhe a direção da qual provinha: o sudoeste, onde ficava a antiga trilha dos cervos, que a tribo usava muito pouco, mesmo quando ela era jovem. O caminho que a levara àquele encontro e a tudo que se seguiu. Kyara franziu a testa, sem acreditar que Lobo estivesse pedindo aquilo, e esperou um pouco, só para ouvir o som se repetindo ainda mais claro. Então, balançando a cabeça, rosnou uma imprecação para si mesma e marchou rumo ao lugar que preferiria não ter que ver de novo.
A chuva apertou por uns momentos, depois diminuiu, passando a cair mansamente sobre as árvores e a trilha. Kyara andava rápido, sem procurar por rastros, apenas seguindo os uivos que se repetiam de tempos em tempos. Aos poucos, embora tanto tempo houvesse decorrido, foi reconhecendo os marcos do caminho, pedras cobertas de limo antigo, árvores anciãs, uma nascente oculta entre arbustos onde os cervos se detinham para beber. Alguns, às vezes, ficavam presos ali pelas galhadas; ela ficara um pouco frustrada, da outra vez que passara ali, por não encontrar nenhum, embora soubesse que seria improvável um caçador da tribo chegar antes dos lobos e raposas. Agora, também, não havia sinal de cervos perto da nascente, nem pegadas de bota ou de mocassim, mas... o que eram aqueles rastros pesados, aquelas folhas amassadas ao redor dos arbustos? O que passara por ali havia apenas uns momentos, pelo que dizia sua experiência?
Um javali. Ela respirou fundo: nem precisava examinar o rastro, o cheiro dizia tudo. Um javali passara pela trilha, e devia ser um dos grandes. Kyara pegou a faca na bolsa de caça e foi naquela direção, as orelhas empinadas, atentas a qualquer ruído que pudesse indicar a presença do animal. Então, os lobos tornaram a uivar, e o estalo de gravetos partidos a fez olhar por cima do ombro, e todos os seus sentidos se aguçaram ao distinguir a mancha azul se movendo em meio às árvores.
-- Ei, você! Tenha cuidado! – gritou, sabendo, de alguma forma, que encontrara o dono das armadilhas e que ele estava em perigo. O homem se voltou, parecendo desorientado, e deu uns passos incertos em direção à elfa, deixando-a vislumbrar cabelos e barba brancos e um rosto vincado por inúmeras rugas. Ela arregalou os olhos, espantada -- e, no momento seguinte, um javali saiu do bosque de carvalhos à direita e partiu com toda a fúria para cima do caçador.
Kyara apertou a faca na mão e se precipitou sobre o animal. Não refletiu, não ponderou, apenas agiu. O velho correu, mas, ao contrário da elfa, era lento demais: o javali estava prestes a alcançá-lo quando Kyara saltou sobre ele empunhando a faca de caça. Pego de surpresa, o animal caiu, mas na mesma hora girou para o lado, quase conseguindo prendê-la sob o seu peso. Ao mesmo tempo, soltou um ronco forte e tentou mordê-la, uma das presas chegando a arranhar sua orelha antes que ela o golpeasse com força. Mirava o coração, e se o atingisse teria liquidado de uma vez o animal, mas a lâmina de obsidiana resvalou, indo se cravar num ponto mais abaixo. Então, antes mesmo que Kyara pensasse no próximo movimento, o som de alguém correndo pela relva molhada cresceu em seus ouvidos, e o javali berrou e estremeceu com o baque de um corpo, ainda que pequeno, se abatendo contra suas costas.
-- Minha faca, avó! Pegue! – gritou Anna, estendendo-a para ela pela lâmina. Era uma temeridade, mas Kyara não tinha tempo para pensar: agarrando o punho da faca, ela golpeou o peito exposto do animal, o metal forjado pelos homens entrando com facilidade, uma, duas, três vezes, enquanto em seu espírito ela pedia ao javali que a perdoasse. Não queria ter feito aquilo, mas não pudera deixá-lo atacar, talvez ferir de morte aquele homem velho, que jamais teria conseguido apanhá-lo num laço e que ele não iria usar como alimento. Kyara, por sua vez, honraria a morte do animal, aproveitando cada parte dele que pudesse para o sustento da tribo e cantando para que seu espírito seguisse em uma nova jornada. Era o dever de todo caçador da Floresta dos Teixos.
Mas isso – diante das circunstâncias – teria que esperar.
-- Você está bem? – Sua voz ecoou a de Anna, dois pares de olhos oblíquos arregalados, um preso dentro do outro enquanto elas se levantavam, ilesas, com as tranças encharcadas e as roupas sujas de lama.
-- Estou bem – respondeu Kyara, enquanto a menina apenas fazia que sim. – E os outros? Tyshen, Lila, Torak... Onde eles estão?
-- Voltaram para casa, levando as bagas e cogumelos. – Baixou a cabeça, as faces vermelhas. – Você disse que, se eu achasse a cabana sozinha...
-- Então foi isso que aconteceu? – Kyara a encarou, sem fôlego. – Você não se assustou com alguma coisa, com o javali, com... com ele?
Indicou com o queixo o velho caçador, que se encostara ao tronco de um carvalho e tremia da cabeça aos pés. Anna negou com um gesto. Ao contrário do homem, não parecia ter medo, apenas curiosidade e... sim, e uma certa empatia. É o povo dela, afinal, pensou Kyara, dolorosamente. Não se podia esconder uma verdade que saltava aos olhos.
-- Tudo bem. – Respirou fundo, passando sobre o corpo do javali e se acercando daquele homem trêmulo. – Depois você me explica tudo direitinho. Agora, vamos saber o que...
-- Não, por favor. Moça... – ele balbuciou, engolindo em seco. Kyara levou um dedo aos lábios, fazendo-o calar. Depois, olhou-o nos olhos.
-- Não sou nenhuma moça – resmungou. – Provavelmente sou mais velha do que você, se quer saber. Pegue essa faca que estou vendo no seu cinto e nos ajude com esse javali. Vamos pegar o que der para carregar e sair da chuva. Se as coisas forem como penso, estamos muito perto de onde poderemos secar as roupas e esquentar os ossos.
*****
Pouco mais tarde, com a carne assando na grelha da lareira e a chuva gotejando pelo teto da cabana arruinada, avó e neta ouviram a história do velho homem. Não era um caçador, trabalhara a vida toda como carpinteiro; não armava laço algum desde os tempos de garoto, o que o tornava semelhante àqueles que Kyara e Raymond poupavam à justiça dos nobres. Ele tentara de novo agora, pensando em pegar algum animal pequeno e se fortalecer para seguir viagem. Pois nunca pretendera ficar, explicou, e não havia por que supor que estivesse mentindo. Jamais quisera entrar no território da tribo, apenas cortava caminho pela floresta, querendo chegar logo em Lardale, onde tinha parentes. Uma viagem mais curta, que saíra de mais perto e terminaria antes – mas, nessa etapa, em tudo semelhante à que trouxera Raymond até a cabana.
A história provocou recordações tão doces quanto dolorosas, mas Kyara conseguiu deixá-las de lado por algum tempo. O velho enchera a barriga de carne e se deitara, coberto pela manta de pele que encontraram num canto, e a menina se aconchegara nos braços da avó, o fogo acabando de secar as roupas no corpo enquanto conversavam em voz baixa. Anna contou que não resistira à vontade de ver a cabana, que fazia uma boa ideia de onde era a trilha e se lembrara de marcar seu caminho para a volta. Num dado ponto do percurso, ouvira lobos, que a alertaram sobre a presença do caçador humano; ela subira numa árvore para não ser avistada e acompanhara lá de cima seus últimos movimentos, até que, para sua surpresa e aflição, visse surgirem quase ao mesmo tempo sua avó e o javali enfurecido.
-- Aí eu acho que esqueci o que você ensinou. Esqueci toda a prudência – admitiu, encolhendo os ombros. – Só queria que você não ficasse machucada. Mas você também nem pensou nisso, quando partiu para cima do javali, não é?
-- É. Não foi prudente, mesmo. E eu teria me machucado, acho, se não fosse sua ajuda. – Sorriu, apertando a menina contra si. – Você não devia ter feito o que fez. Nada do que fez, aliás, desde que se separou dos outros, e ainda vamos conversar melhor sobre isso. Mas se saiu muito melhor do que eu esperava.
-- Obrigada. Mas, avó – Anna parecia um pouco inquieta --, é assim que os homens ficam quando são velhos? O livro de Maryan mostra alguns de cabelo branco, e ela disse que era quando envelheciam, mas não me falou que ficavam desse jeito, fracos, com as pernas tremendo...
-- Ah, mas nem todos ficam. Seu avô, por exemplo. – Kyara se lembrou de uma onda de cabelo prateado, de um sorriso realçado pelos vincos de um rosto másculo e moreno, e se encheu de convicção. – Ele já era velho quando morreu, não tanto quanto esse aí, mas ainda era forte e ágil. Tanto que o levaram para ajudar a defender o castelo, ele morreu no alto da muralha, de arma na mão. E, além de forte, era bonito – segredou, movendo as sobrancelhas para que a neta risse. – Foi bonito até o fim, e eu o amei do mesmo jeito até o fim.
-- Eu sei, mas, avó... Eu também tenho sangue humano. Sou quase humana. – Levou as mãos às próprias faces, os olhos cheios de uma súbita angústia. – Será que eu vou ficar desse jeito? Eu posso ser como meu avô, mas também pode ser que...
-- Não! Escute bem, minha Anna. – Kyara pegou as mãos dela e as abaixou, olhando-a com um amor tão intenso que quase machucava. – É verdade, você é quase humana, mas isso não muda o que eu sempre lhe disse. Você é filha da nossa tribo, leal, inteligente, corajosa. Logo vai crescer e se tornar uma mulher forte e sábia. Não se preocupe com o futuro muito distante, se um dia vai ficar velha, se sua pele vai enrugar ou o cabelo ficar branco. Isso é apenas o lado de fora! Honre os Guardiões, cumpra seus deveres e, sempre que puder, alegre seu espírito e o faça dançar. E, lembre-se, haja o que houver, você é e sempre será uma de nós. Promete não esquecer?
Anna a encarou, o rosto muito sério, e fez que sim com a cabeça. Kyara tornou a abraçá-la, depois a soltou, pretextando ter que virar as tiras de carne sobre a grelha. Havia muito mais que poderia dizer, mas ela preferiu não se antecipar às perguntas, porque sabia que o tempo e a vida trariam as respostas necessárias. Por ora, bastava ficar ali, acalentando as memórias de Raymond, enquanto Anna, depois de alguns momentos a olhar fixamente para o fogo, respirava fundo, abria a bolsa de caça e confiava pensamentos, dúvidas e sonhos ao seu caderno.
Ali, naquela cabana onde se uniam as trilhas do passado e do futuro.
Ali, onde as sombras sussurravam que uma nova jornada em breve iria começar.
*****
E o conto chega ao fim! Espero que tenham gostado e deixem seu feedback, ele é muito importante!!
Parte 1.
Parte 2.
Para quem gostou da Anna criança, sugiro o livro Anna e a Trilha Secreta, onde ela encontra os Espíritos Guardiões da Tribo.
Aqui no blog do Castelo você pode ler um conto em que a Anna é ainda mais novinha, centrado em Maryan e Zendak, clicando aqui.
Para um conto da Anna aos 14 anos aprendendo a caçar, cliquem aqui.
E continuem com a gente. Em breve teremos outro conto, desta vez de uma dupla de avô e neto muito talentosos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário