quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O Espetáculo Não Pode Parar (parte 1)

Este conto se passa em Athelgard, só que no País do Norte, ao passo que os personagens são gente do Leste. Mais precisamente do Povo Alto, originário de Pwilrie, que esteve muito tempo sob o domínio de outra cidade, fazendo com que boa parte dos habitantes originais partisse e se tornasse nômade. Muitos ganham a vida como artesãos, e também há vários saltimbancos, como a família deste conto.
Zemel, nosso pequeno herói, aparece em várias histórias, criança, jovem e adulto. Aqui ele conta um episódio de sua infância e uma valiosa lição que aprendeu com seu avô -- seu primeiro mestre. Espero que gostem!
O ilustrador deste conto é o talentosíssimo e polivalente Vilson Gonçalves.



Sempre que vejo um cavalo se assustar, eu me lembro do meu avô. Foi por causa de um susto desses que ele quebrou a perna, e isso acabou com seus dias de saltimbanco. Meio que acabou. Talvez, pensando bem, se possa dizer que não; que ele continuou, de certa forma, fazendo o que fazia desde criança e que começou a me ensinar quando eu não tinha mais que dois ou três anos.
Ah, não, os cavalos não; isso viria um pouco mais tarde. Acrobacia, para começar. Os saltos, o equilíbrio, a parada e o caminhar sobre as mãos, coisa que sempre fez sucesso e garantia algumas moedas nos nossos chapéus. Minha mãe costurava para mim uma roupa toda feita de retalhos, o mais colorida possível, me dava um beijo e alguma coisa para comer quando tínhamos, e lá íamos nós, eu e meu avô, para tentar a sorte nas aldeias e nas praças das cidades maiores. Lardale, Valence, Leighdale, até mesmo Siberlint, à sombra dos Penhascos Gelados: minha família passou por todas, e em todas fizemos espetáculos. De vez em quando visitávamos a aldeia onde nasci – num estábulo, vejam só, um estábulo vazio que conseguimos emprestado, porque fazia frio demais para podermos dormir nas tendas –, e então eu escutava mais uma vez a minha própria história, como minha mãe não tinha leite nem meu pai trabalho, como aqueles camponeses também muito pobres ajudaram nossa família e como, em agradecimento, me deram o nome da aldeia. É isso mesmo, senhoras e senhores: no País do Norte existe uma aldeiazinha chamada Zemel. Pequena e sem graça, assim como eu, e já passou por muitas guerras, invernos rigorosos e pragas do feno. Mas resiste. É o mesmo que eu espero que um dia se diga sobre mim.
E era assim também que eu pensava no meu avô. Por volta dos sessenta anos, ele era alto, cabelo e barba como neve, o corpo cheio de músculos, tendões e cicatrizes. Sempre tinha sido artista, primeiro em Pwilrie, sua cidade, e noutras terras do Leste, depois com o grupo que formou para percorrer o País do Norte, levando espetáculos de acrobacia, malabarismo, dança, música e pequenas peças de teatro. Suas filhas cresceram nas tendas desse grupo nômade, que aumentava e diminuía conforme as pessoas o deixavam ou se juntavam ao longo do caminho. Por fim, numa cidade arrasada pela guerra, minha mãe conheceu meu pai, que liderava seu próprio grupo de viajantes; um dos que estavam com ele agradou a minha tia, e meu avô, que era viúvo já fazia uns bons anos, acabou se despedindo dos velhos amigos para seguir em companhia das filhas e dos genros.
Uma renovação bem-vinda, todos dirão. Novas pessoas, novas ideias, novos números. Assim seria, se os genros também fossem saltimbancos.  Acontece que eram artesãos. E entre meu pai, o ferreiro que percorria as fazendas oferecendo seus serviços, e o marido de minha tia, que consertava panelas e as vendia no mercado, Thiers de Pwilrie demorou a ter um novo companheiro de espetáculos.
Em minhas memórias mais antigas, não estou brincando com as outras crianças do grupo, não estou observando o trabalho do meu pai na forja – como era exigido do meu irmão mais velho – nem com minha mãe, costurando e mexendo panelas, como minha irmã fazia desde pequena. Em vez disso, visto a tal roupa de retalhos e executo vários saltos, um dos quais me leva aos braços erguidos de meu avô. Eu apoio o topo da minha cabeça na sua, asa de corvo sobre campo de neve, e fico com as pernas no ar, eretas, abertas em tesoura, o que for preciso para manter o equilíbrio. Monto nos ombros dele para fazer malabarismo. E, em memórias mais recentes, fico de pé sobre o dorso de um cavalo, ainda sem saber muito mais do que me equilibrar durante o galope, mas o que faço já parece uma pequena proeza aos olhos dos camponeses. Ela os prepara para a exibição de Thiers, esse sim, um verdadeiro acrobata equestre, que gira sobre a sela, se apoia num pé só e sobre as mãos e arranca da plateia gritos e aplausos.
Eu me lembro de chapéus abarrotados de moedas, de camponeses pagando a diversão com ovos e repolhos, de rapazes aceitando o desafio de se manter em pé sobre a sela, o cavalo a passo lento, andando em círculos ao redor de meu avô, que segura a ponta do cabresto nas mãos. Lembro-me de meninos maiores que eu me olhando cheios de inveja. E, com mais clareza – porque eu já tinha idade suficiente, quase oito anos --, lembro-me de quando a inveja passou de todos os limites, e um grupo de garotos assustou o cavalo, enquanto alguém oculto pela multidão lhe atirava uma pedra.
Ainda guardo em minha memória cada som, cada cor, cada detalhe daquela cena. O animal empinou, um relincho de dor e de susto, o sangue escorrendo do focinho enquanto meu avô foi ao chão. Caiu de muito mau jeito, sobre a perna torcida, e não conseguiu se levantar nem para acalmar o cavalo, que saiu desembestado praça afora, nem para me resgatar do monte de gente que se precipitava sobre ele, passando por mim, tão pequeno e quase invisível diante daquela comoção. Por sorte, alguém deteve o cavalo e foi honesto o bastante para devolvê-lo, e um mercador robusto me viu chorando apavorado e me pegou no colo antes que a multidão me pisoteasse.
Entre gritos e exclamações de piedade, apareceu um cirurgião, que fez o possível para arrumar o osso quebrado na perna de Thiers. Não pediu nada pelo trabalho, assim como o fazendeiro que nos levou para o acampamento em sua carroça, mas, apesar de toda a ajuda que tivemos, eu não conseguia me esquecer dos risos e da zombaria que acompanharam a queda. Não foram só as pessoas que tramaram para derrubar meu avô. Muitas outras tinham achado graça, como se fosse engraçado um velho cair do cavalo e ficar gemendo no chão com a perna quebrada. Isso me machucou demais -- de certa forma, também me quebrou. E, por algum tempo, não fui capaz sequer de falar no assunto.
Nossos planos eram ficar na cidade por apenas mais um dia ou dois, mas, com meu avô sentindo tantas dores, prolongamos a estadia por quase dois quartos de lua. Com isso perdemos a data da feira de lã que haveria na cidade seguinte, e meu pai estava numa maré de azar: além de não encontrar os mercadores vindos para a feira, cujos cavalos poderiam precisar de ferraduras novas, não conseguiu trabalho nas fazendas e aldeias pelas quais passamos. Nosso dinheiro estava perigosamente no fim. Para complicar, minha mãe amamentava meu irmãozinho e minha tia estava grávida, demandando cuidados, isso sem falar em Thiers, que ainda estava usando talas e mal conseguia andar com a ajuda de uma muleta. Mesmo assim, quando acampamos perto de uma aldeia pequena, ele foi falar comigo, disse que eu devia tentar a sorte, fazer um pouco de malabarismo e acrobacia em troca de algo para comer. Foi o mesmo que falar com uma árvore.
-- Eu não vou mais, vovô – respondi, a cabeça baixa. Ele me olhou espantado, quis saber o motivo, ficou alguns instantes em silêncio quando respondi. Então, com voz e jeito mais duros do que eu esperava, disse que a vida era assim mesmo, às vezes você cai e se machuca; que alguns vão rir, mas outros podem ajudar, e que ter medo de fazer os espetáculos era o mesmo que ter medo da vida. Na hora não respondi, e acho que ele mesmo percebeu que tinha sido duro, porque logo depois me abraçou pelos ombros, daquele jeito companheiro, e disse que eu pensasse bem e que iríamos conversar de novo no dia seguinte.
E eu pensei, ou melhor, fiquei o resto do dia com aquilo na cabeça, me incomodando, me inquietando, me fazendo sentir pena e raiva de mim mesmo. Incomodou ainda mais quando vi meu pai carrancudo e preocupado, quando ouvi meu irmãozinho chorar, quando a refeição da noite foi uma sopa rala com raros pedacinhos de legumes. Por cima de tudo isso, eu via que meu avô me observava, seus olhos de falcão por baixo das sobrancelhas brancas, dizendo o que as palavras não precisavam dizer. E mesmo assim eu continuei calado no meu canto.
De manhãzinha, após uma noite sem sonhos, acordei ouvindo os roncos da minha própria barriga. Meu irmão dormia ao meu lado, a sono solto, mas meu avô não estava na tenda, e eu ia começar a estranhar quando ele entrou, a cara torcida de dor, apoiado num bastão de carvalho.
-- Então, Zemel? – sussurrou, para não acordar o neto mais velho. – Pensou melhor? Vai fazer o espetáculo?
-- Vovô, e-eu acho que... que ainda não sei...
-- Muito bem. – Respirou fundo: tomara uma decisão. – Vista-se, de qualquer jeito, e venha comigo. Vou precisar de sua ajuda.

***

Zemel é o herói do meu livro Pão e Arte, publicado pela Editora Escrita Fina, que depois foi comprada pela Zit. Pode ser encomendado em livrarias ou na Estante Virtual.

            Neste blog vocês conhecem o cara que viria a ser o futuro mestre do Zemel.




Parte 2.

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