quarta-feira, 6 de abril de 2011

Temporada das Flores (parte 1)

Finalmente, nosso primeiro conto, apresentando mais um personagem de O Castelo das Águias. Espero que curtam lê-lo tanto quanto eu gostei de o escrever.

- Se Theoddor estivesse aqui, poderia me falar sobre vocês – disse Camdell, dirigindo-se às flores. De corolas firmes, com pétalas azuis rajadas de um rosa vivo, elas se espalhavam pela colina, concentrando-se sobretudo em torno da laje que marcava o túmulo de seu amigo. Era como se soubessem o quanto ele as teria apreciado.

Theoddor de Vrindavahn fora o último senhor do Castelo das Águias. Ao nascer, já não era nobre – os títulos de nobreza tinham sido extinguidos nas Terras Férteis há várias gerações – mas herdara uma fortuna considerável, que lhe teria permitido uma vida tão despreocupada quanto as de seus ancestrais. Em vez disso ele se dedicou aos estudos, com a firme intenção de ingressar na Escola de Magia de Riverast. Inútil esforço: além do sangue inteiramente humano, que por si só diminuía suas chances, Theoddor nascera sem o Dom. Foi essa a alegação dos mestres ao recusar-lhe a entrada.

Em meio a tantas rejeições, uma única voz se levantara a seu favor: a de Camdell, um mago com três quartos de sangue élfico, já então tido na Escola como excêntrico por discordar das limitações impostas ao aprendizado. Os dois partiram de Riverast na mesma época, um para estudar Ciências da Terra e o outro para a Escola Bárdica em Kalket, e em três décadas não se passou um ano em que não trocassem pelo menos uma carta. E como, embora separados, suas idéias se aproximassem cada vez mais, Theoddor convidou o amigo a viver no Castelo das Águias, onde fundaram e se dedicaram durante sete anos à sua idealizada Escola de Artes Mágicas.

Agora, finalmente, ela era mais do que apenas um sonho. Mas Theoddor já não estava ali para ver.

Camdell pousou um joelho no chão e encostou a palma da mão à laje. Sob o sol de primavera, ela estava aquecida, o que também teria agradado a Theoddor. Ele amava o calor, a claridade, as cores vivas que a Natureza só exibia nas estações mais quentes. Era quando fazia a maior parte de suas descobertas, plantas e insetos até então desconhecidos que coletava, com todo cuidado, para estudar em seu laboratório. Quando chegava a uma conclusão, partilhava-a, cheio de entusiasmo, não só com sábios como ele mas também com os mestres, aprendizes e até empregados da Escola, por mais humildes que fossem. Era um homem decidido e generoso, e sua ausência fora lamentada ao longo de todo aquele inverno. Agora, porém, chegara a primavera, e a Natureza vestira as colinas de flores – o que, para Camdell, era um sinal de que o tempo do luto devia ser deixado para trás.

Era preciso despertar da letargia e encarar seus problemas. Felizmente não havia nenhum relativo à posse do Castelo – anos atrás, Theoddor fizera dele o seu herdeiro, e o documento não podia ser contestado – mas alguns empregados tinham decidido partir, e o mesmo ameaçava fazer o Irmão Dougan, o mestre de Matemática que haviam contratado através do Templo. Não fora boa ideia convidar um homem tão devoto para trabalhar numa Escola de Magia. Além disso, havia a questão das Ciências da Terra, que sempre tinham estado a cargo de Theoddor e que nenhum dos outros conhecia o bastante para ensinar. Camdell já poderia ter feito algo a respeito, procurando algum estudioso da Natureza ali mesmo em Vrindavahn ou, melhor ainda, escrevendo aos antigos colegas de Theoddor e pedindo que recomendassem um substituto. Várias pessoas, na Escola, tinham sugerido isso. No entanto, o assunto parecia sempre fugir de sua memória, como se, tendo vida própria, insistisse em ser deixado para mais tarde. Para quando a solução pudesse fluir naturalmente e em harmonia.

Talvez as flores também quisessem dizer algo a esse respeito.

Camdell fechou os olhos por alguns instantes, depois voltou a abri-los, fixando-os na flor cujas pétalas lhe pareceram ter a cor mais viva. Durante um longo tempo ele ficou assim, imóvel e concentrado, a mente vazia se tornando o receptáculo ideal para as visões. No início eram imagens sem sentido, formas e cores fugazes que, no entanto, foram pouco a pouco se agrupando como num mosaico. Sem esforço, sem resistência, o mago permitiu que sua mente viajasse ao longo daquele padrão, que o percorresse e esquadrinhasse até ser capaz de compreendê-lo.

Então, as coisas se tornaram repentinamente muito claras. Com um sobressalto, ele regressou de sua jornada, os olhos piscando, acostumando-se de novo ao sol enquanto buscavam o sopé da colina.

E lá, iniciando a subida, estava Gurion, o fidelíssimo intendente do Castelo, seguido por um forasteiro de cabelos dourados.

Parte 2

3 comentários:

  1. Se Theoddor estivesse aqui ele me daria as mãos agora, diria certamente estarem frias. E sobre as flores, ele falaria também. Camdell ouviria com atenção e respeito, talvez uma pontinha de ciúme - embora fosse íntegro demais para essas coisas.

    Então, Theodorr voltaria seu rosto para mim, e eu ficaria intrigada com aquelas margens floridas, mergulhando meu olhar nas coisas infinitas e assim mesmo pequenas, ínfimas. Nunca imaginara o rosa ter tantas e tamanhas gradações. E o azul... Após algum silêncio, ele me falaria da vida jorrando então na minha frente.

    - Onde as cores, se vistes esses campos? A vida, no imenso pairar deste solo?

    (e como tudo o que é bom, continua)

    E, óbvio, isso é apenas uma dramatização grosseira, feita unicamente para fazer você rir, Ana. E, claro, os seus colegas.

    Seu livro é lindo. Não tenhas dúvida.

    um beijo.
    Vânia

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  2. Cara Ana, Seu Theoddor me lembra, com suas devidas restrições, é claro; Theoden de Rohan (Senhor dos Anéis): por sua generosidade, bondade, o respeito que desperta em todos, mas ao mesmo tempo sua força de caráter e espírito. e o Camdell, nossa, como eu queria ter um orientador na faculdade assim como ele! O melhor personagem do Castelo depis do querido por todos, mestre Kieran!

    E Vânia, sua dramatização não foi grosseira e sim muito agradável até de se ler, mas não nego que tenha me feito sorrir ao lê-la, mas não rir de forma alguma.

    Beijão!

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  3. Anas!

    Eu falo grosseira não no sentido pejorativo, mas no de ser "menor" inegavelmente.

    Ana C., se você encontrar, assim por acaso algum dia, na faculdade um "orientador", jura que me conta? Nas três faculdades em que estive em fases diferentes da vida, nunca encontrei nenhum. Custo a crer que sequer existam, mas como Theodorr não está aqui para afiançar, não posso obter elementos que satisfaçam a minha curiosidade.

    Já a parte que me cabe, fazer uma Voz de Bardo sorrir... Acho que é um elogio, não?

    Quanto ao conto: é belo. E curiosidade mata muito lentamente...

    bjs
    Vânia

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