terça-feira, 26 de julho de 2011

O Primeiro Outono - parte 1

Este conto faz parte de uma série de histórias envolvendo Zendak, xamã da Tribo da Floresta dos Teixos, e Maryan, mestra de sagas e seguidora de Odravas. São inspiradas na música (brasileira e não muito recente) que para mim é o tema do casal. Daqui ao fim da série, quem acertar qual é ganha um brinde surpresa do Castelo das Águias ;)



O Primeiro Outono

Da terra, junto à terra e com os filhos da terra. Fora sua decisão viver assim, e não desistiria. De sua casa em Kalket, com os pórticos sustentados por colunas de pedra e o jardim de videiras, até a vila de Bryke, tivera quase duas luas para refletir: tempo bastante para decidir que cumpriria seu propósito de viver numa comunidade Odravas. Seria difícil, principalmente nos primeiros tempos, mas lá estavam seus amigos, pessoas que tinham ido antes e aberto caminho, e todos afirmavam estar bem e felizes.

E de fato estavam – felizes por haver sobrevivido ao inverno, por contar com a ajuda da tribo local e assim não morrer de frio e de fome, por ter um teto sobre as cabeças e, ao final de quatro anos, algumas cabras, hortas e a maioria dos sonhos intactos. Tinham o que sempre buscaram, a vida simples e frugal recomendada pelo sábio Odravas.

Ele jamais dissera que seria fácil.

Maryan se embrulhou na manta antes de levantar. Fazia frio no cômodo, usado como sala e cozinha pelos amigos e que, desde sua chegada há três dias, servia-lhe também como quarto improvisado. Pylos e Narhi dormiam num aposento anexo, que recebia o sol da manhã. Saíam cedo para ordenhar as cabras e abrir a oficina de cantaria. Eram as únicas pessoas em Bryke a saber talhar pedra, por isso forneciam blocos para todas as construções, uma ironia quando se pensava que ambos eram arquitetos de renome nas Terras Férteis. Agora tinham calos nas mãos como qualquer trabalhador. Nascemos todos nus, a natureza nos quer iguais, dizia Odravas.

De joelhos no chão, Maryan avivou as brasas da lareira e as alimentou com musgo e gravetos. Encaixou uma grade de ferro em dois suportes pouco acima do fogo e sobre ela pôs uma fatia de pão coberta com queijo de cabra. Enquanto esperava que derretesse, fez suas abluções – a água fria, sempre fria, do Rio da Lontra – e foi até a janelinha lateral para jogar fora o conteúdo do jarro. Então, ainda embrulhada na manta, virou-se para conferir o desjejum.

E ali, de pé, no meio do cômodo, deparou-se com um dos elfos da tribo.

O susto só não foi maior porque Maryan já conhecera alguns deles, e além disso sabia que eram amistosos e solícitos com as pessoas de Bryke. Mesmo assim, a presença inesperada a fez recuar. O elfo sorriu, seus dentes muito brancos em contraste com a pele morena e – agora ela percebia – marcada com tatuagens sobre o olho direiro e na face esquerda. O olho era circundado com um sombreado cuidadoso, e no rosto havia um símbolo que lembrava uma asa. Todo o conjunto era emoldurado por cabelos negros e longos, enfeitados com penas pintalgadas de branco e preto. O xamã da Casa do Corvo, pensou Maryan, lembrando do que os amigos tinham contado sobre ele. Era a pessoa a quem deviam sua sobrevivência no primeiro e terrível inverno.

E, segundo afirmavam, a criatura mais desconcertante do mundo.

- Acho que a assustei. Sinto muito – disse ele, sem deixar de sorrir. – Entro sem avisar porque sou amigo de Narhi e Pylos. Meu nome é Zendak.

- Sou Maryan – disse ela, sem saber como cumprimentá-lo. A saudação dos elfos brilhantes era um toque das mãos abertas, a dos Odravas um beijo, mas o xamã não era uma coisa nem outra. Por fim, ela decidiu oferecer a mão, unindo sua pele delicada à palma áspera de Zendak.

- Seu toque é macio – comentou ele. – Você não corta pedra como Narhi. Você cria esses, ahn... cabras?

- Não, eu...

- Que bom! Eu não gosto daquilo ali – torceu o nariz para seu desjejum, que borbulhava na lareira. Maryan se apressou a retirá-lo do fogo, usando um garfo longo, e colocá-lo num prato, não sem antes perceber que a parte de baixo estava inteiramente queimada. Zendak, enquanto isso, se abaixara e folheava um dos livros que ela deixara no chão, olhando com interesse para as gravuras.

- Quem é essa gente? – apontou. – Humanos, estou vendo, mas e essas roupas?

- São cavaleiros do País do Norte. Essas roupas se chamam armaduras. São só para lutar – disse Maryan. – Em batalha ou em torneios.

- Torneios?

- Jogos. Um tenta derrubar o outro do cavalo.

- Parece divertido. Nós gostamos de jogos por aqui. Temos um parecido com esse, de derrubar o rival, mas é com troncos no rio e não com cavalos - disse o xamã. Sob os cílios longos, seus olhos tinham um brilho vivo, inteligente e, de alguma forma, cheio de calor. Maryan decidiu que simpatizava com ele.

- Vou comer, se não se importa – disse, e mordeu estoicamente o pão queimado. – Posso lhe oferecer alguma coisa? Frutas?

- Este livro? – ele a surpreendeu, erguendo o volume. – Eu tenho alguém a quem mostrar as gravuras.

- Oh, bem, elas são muito bonitas – disse Maryan, engolindo em seco. – Eu o daria, mas é que o livro foi um presente... de um de meus mestres, sabe, nas Terras Férteis. Eu não poderia...

- Eu devolvo – disse Zendak.

Com uma rapidez e uma decisão que a impediram de reagir, ele fechou o pesado livro nórdico, meteu-o sob o braço e saiu, só se voltando por um momento a fim de sorrir para Maryan. O que foi isso, ela pensou, aturdida. Era como se não lidasse com uma pessoa e sim com a chuva ou o vento. Qualquer força imprevisível da natureza.

Mais tarde, comendo com os amigos que tinham retornado da oficina – queijo e pão, mais uma vez, acompanhados de legumes e pinhões – Maryan contou sobre seu estranho visistante e o livro do qual ele se apossara sem que ela houvesse chegado a concordar. Fez dessa uma história divertida, pois era assim que lhe parecia agora. No entanto, não deixou de lamentar a perda do livro, ao que a opinião dos amigos se mostrou dividida.

- Ele vai devolver – disse Pylos. – As gravuras o deixaram curioso, mas o livro não tem nenhuma utilidade para ele.

- Por outro lado, Zendak tem várias coisas que não lhe servem de nada – ponderou Narhi. – Ele mesmo disse: “sou um corvo, gosto de tudo que brilha”. Lembra da cabana dele, no alto da árvore-mãe?

- Lembro. De fato, é cheia de coisas que ele provavelmente não vai usar. No entanto, eu não me preocuparia se fosse você – disse Pylos, dirigindo-se a Maryan. – Tudo para a tribo se baseia em trocas... se Zendak achar por bem ficar com o livro, vai aparecer com algum presente, e pode acreditar que vai ser alguma coisa da qual você precisará vivendo aqui. Um manto de inverno, por exemplo.

- Não vou usar isso – protestou Maryan. – Tenho mantas excelentes, que vão durar anos, e Bryke já conta com dois ou três tecelões. Não preciso me cobrir com peles de animais!

- Pensávamos assim quando chegamos – disse Narhi, balançando a cabeça. – Nenhum de nós queria usar as peles, nem comer a caça que eles abatiam. No fim do inverno, eram poucos os que tinham conseguido ficar sem prová-la.

- Bom, vocês não tiveram tempo de construir as estufas – argumentou Maryan, com teimosia. – Agora já dispõem de legumes e frutas, sem falar no centeio, que, segundo eu soube, deu muito bem este ano. A propósito, quando poderei começar a fazer alguma coisa? Nunca trabalhei com a terra, mas acho que não terei dificuldade em aprender.

- Certamente não. Mas é cedo para você se comprometer com alguma coisa – respondeu Narhi. – Se fosse artesã, seria diferente, mas uma mestra de sagas... Achamos que é melhor experimentar vários trabalhos antes de se decidir por um.

- E tem o plano da escola – lembrou Pylos. – Se aquele grupo de Erchedel vier mesmo para cá, serão cerca de vinte crianças. Precisaremos de quem se encarregue da educação deles, e você faria isso melhor do que ninguém.

- Talvez. Mas, se vierem, será no verão, e ainda estamos no outono. Preciso fazer alguma coisa nesse meio-tempo.

- É claro. Mas não precisa ter pressa – disse Pylos. – A necessidade cria a ação, como ensina Odravas. Quando menos esperar, você estará realizando alguma coisa.

.....

Novos e interessantes personagens te esperam na Parte 2!

3 comentários:

  1. Oi Ana!!!

    para variar...serei a primeira a comentar. hehhehe.

    Adorei o conto. Muito bom, você sabe que eu nutro uma certa admiração pelo sábio Odravas...

    Enfim, adoro seus diálogos.
    bjs
    Vânia

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  2. voltando... eu sei qual é a música, mas acho que não vale, né?

    bjs
    V.

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  3. "Da terra, junto à terra e com os filhos da terra." Sábio Odravas, adoro! Ana, Sua escrita como sempre impecável e com estes contos que posta por partes deixa sempre um gosto de quero mais em nossos olhos ávidos por tuas belas e divertidas histórias!

    Um grande beijo da tua sobrinha que te adora! ;*

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