segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O Primeiro Outono - Parte 2


Se alguém lhe perguntasse, Zendak não teria dificuldade em admitir seu gosto pelas coisas curiosas. Nem sempre brilhantes, às vezes nem mesmo bonitas: essas coisas o atraíam por ser diferentes, porque o faziam pensar e entender o mundo de um jeito como nunca o vira antes. Com as pessoas também era assim, por isso ficou tão feliz com a chegada dos seguidores de Odravas. Dos próprios corpos, com pele clara e cabelo reluzente, às casas de pedra cheias de objetos que desconhecia, eles eram um desafio, um enigma que o xamã se dedicara a decifrar naqueles últimos anos e que, mesmo agora, continuava a estimular sua mente.

Aquele livro, por exemplo. Vendo as gravuras e fazendo duas perguntas, já aprendera coisas novas, e sabia exatamente com quem devia partilhá-las. E havia a recém-chegada, com seus olhos cinzentos, a determinação patente na maneira como se enrolava na manta e mordia o pão queimado, coberto pela coisa repulsiva feita de leite.

Sim, ele queria saber mais sobre ela.

Esse era mais um motivo para fazer o que pretendia fazer agora.

O ruído da cascata foi crescendo à medida em que Zendak se aproximava da cabana de Kyara. Três anos atrás, para surpresa dos que a julgavam morta ou perdida para sempre, sua prima retornara de uma longa estada entre os humanos, trazendo a neta ainda bebê para que crescesse em meio à tribo. Os parentes se ofereceram para alojá-las, mas, talvez por precisar de algum tempo a sós, ela preferiu ocupar a antiga cabana junto à queda d’água, que costumava ser usada para defumar peixe antes que a tribo descobrisse um lugar melhor rio abaixo. Os cantos ainda cheiravam levemente a fumaça, mas o ambiente era limpo e seco, enfeitado com móbiles e pinturas feitas pela criança.

Anna estava prestes a passar pelo seu quarto inverno. Tinha olhos como os dos elfos, grandes e oblíquos; usava tranças e roupas de couro macio, como qualquer menina da tribo, mas seu rosto era inequivocamente humano. Zendak a encontrou sentada à frente da casa, junto a um cesto cheio de penas que separava em outros dois, menores. Em um, as penas longas e retas que serviriam para emplumar flechas; em outro, as pequenas, destinadas a adornos e outros fins.

- Guarde essa aí – disse Zendak, vendo-a pegar uma pena marrom. – Com ela posso cantar e transformar você numa corujinha.

- Pode nada! E a avó, como fica? – replicou a menina. Estava rindo, mas nesse riso havia uma ponta de desconfiança. Ninguém jamais sabia quando Zendak falava a sério.

- Tenho uma coisa para você ver. – Sentou-se ao lado dela, pousando o livro no colo, e o abriu ao acaso. – O que acha dessas pinturas?

- Bonitas. Quem é esse aqui? – perguntou Anna, apontando um dos homens a cavalo. – Que bicho é esse na roupa dele?

- Não sei – admitiu Zendak. – Um lagarto?

- Não é lagarto não, porque tem asas. - Anna franziu a testa, pensou por um momento antes de passar a outra página. Outro mistério.

- Essa lança é muito comprida. É para tirar urso da toca?

- Eu soube que é um jogo – respondeu o xamã. – Dois homens a cavalo com lanças, um tenta derrubar o outro.

- Mas ninguém se machuca? – tornou a criança. – Eles são amigos?

- Não sei – disse Zendak, de novo. – Mas conheço uma pessoa – a pessoa que me emprestou esse livro – que pode explicar tudo isso a nós dois. O que você acha?

- Eu quero! – exclamou Anna, com vivacidade. – Me leva lá?

- Levar onde? – perguntou a avó, surgindo à porta da cabana. No frio matinal, usava uma túnica sem mangas e calças de couro, que, embora recém-lavadas, exibiam manchas acastanhadas deixadas pelo sangue de animais. Kyara sempre fora boa caçadora. Quando menino, Zendak ouvira inúmeros elogios à sua habilidade, mas estes se transformaram em lamento quando, seguindo o rastro de um cervo, a prima desaparecera na floresta. Várias causas tinham sido imaginadas, mas, depois de muita discussão, não conseguiram decidir se o mais provável fora uma queda ou um urso.

Foi dificil acreditar que Kyara houvesse partido com um homem.

O casamento fora feliz, mas terminara abruptamente em meio a uma guerra, e a filha que poderia tê-la confortado morrera dando à luz a pequenina Anna. Zendak sabia que, ao trazer a neta para a floresta, Kyara não queria apenas lhe dar uma família, mas também mantê-la a salvo de outras guerras, atrocidades e injustiças que vira nas terras humanas. No entanto, não havia como mantê-la para sempre alheia à sua herança. Era nisso que ele pensava ao trazer o livro.

Kyara folheou as páginas em silêncio enquanto ouvia seus argumentos. Não o interrompeu, porque ninguém interrompia o xamã, mas sua contrariedade era visível na expressão e nos gestos. Ainda assim, o que ele dizia fazia todo sentido, por isso ela pensou bem antes de dar uma resposta evasiva.

- Eu não sei se Anna tem idade para ouvir sobre essas coisas – disse, por fim. – O mundo é grande, mas é cheio de perigos. Enquanto ela é criança...

- Exatamente. O mundo é grande – replicou Zendak. – É bom que ela comece a conhecê-lo desde já. E que seja através dos elfos de Bryke, porque eles têm todas essas coisas – os mapas, os livros, as lunetas – e são boa gente, que veio procurando paz e não guerra. Nós não sabemos muito sobre o mundo além da floresta, e os homens – encolheu os ombros – bom, ela terá de conviver com eles um dia, então é melhor que vá aprendendo um pouco a esse respeito.

- Por que insiste nisso? – indagou Kyara, franzindo o cenho. – Por que fica dizendo que ela terá de conviver com os homens?

- Por quê? É só olhar para ela. – Zendak fez um carinho no cabelo de Anna, traçou o contorno de sua orelha com o dedo. – Hoje ela é uma criança, mas imagine-a daqui a quinze, vinte... ou, digamos, cinqüenta anos. Conforme for crescendo, ela irá perceber cada vez mais que é diferente de todos aqui, e quando envelhecer será mais ainda. É claro – apressou-se a acrescentar – sua neta pode acabar concluindo que prefere ficar entre nós, voltar para a floresta e ser feliz, e isso vai ser ótimo para todos. Mas antes disso ela tem que cruzar o rio. Tem que conhecer outros da mesma raça. E é melhor que se prepare bem antes de ir.

- Hunf! Não sei no que isso pode ajudar – Kyara fungou, afetando desprezo. – Os homens não são como nós. Não importa o que digam, nunca se sabe o que estão pensando. Muito menos o que farão.

- Pode ser. Mas, se Anna souber como eles vivem, conhecer os costumes e as histórias deles, isso será melhor do que nada. Além disso, é bom que conheça também as pessoas de Bryke. Não vejo tão longe para saber como ela irá crescer – disse, em tom reflexivo. – Mas longe o bastante para saber que nós e os elfos brilhantes seremos cada vez mais um único povo.

- Seremos. Se você continuar a alimentá-los no inverno.

- Eles me alimentam também – sorriu o xamã. – Alimentam meus pensamentos. Bom, e então? Posso levar Anna até a vila?

- Levaria de qualquer jeito – resmungou Kyara. – Mas não a deixe chegar perto das cabras. Não confio naqueles chifres. E preste atenção em tudo que aquela gente disser a ela.

- Serei todo ouvidos – prometeu Zendak.

.....

O xamã vai lá. E você? Corra para a Parte 3!

3 comentários:

  1. Oi Ana!

    Mais uma vez a primeira a comentar...

    Adorei essa parte do conto, principalmente porque conheço bem a história da Anna... Fico curiosa para saber o que Anna verá e ouvirá na vila. Se bem que... quando ela cruzar o rio, somente o rio irá dizer o que se passará dentro dela...aguardemos. Grandes feitos para um grande coração!!

    Beijos mil.
    sua amiga.
    Vânia

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  2. Cara Ana, realmente o Zandak é uma figura rápida, ágil e inteligente tal qual o vento, desconcertante e atraente. Aliás, um ótimo elemento em combinação com a pequena e curiosa Anna. ;)

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  3. Caramba. Ainda não li a parte um e já tá na dois...

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