domingo, 7 de agosto de 2011
O Primeiro Outono - parte 3
Um sonho como o de Odravas pode facilmente se transformar em pesadelo. Não para ele próprio, que baseara sua comunidade pioneira nas Terras Férteis e passava os dias descalço, ao sol, meditando e vez por outra colhendo ervas numa horta, mas para aqueles dentre seus seguidores que tinham ido além e se mudado para lugares como Bryke.
A floresta selvagem, o vento e o frio inclemente compunham o cenário em que se desenrolava cada ato do drama: o de rachar a lenha, com o cabo do machado abrasando as mãos, o de arrancar as ervas daninhas – os joelhos esmagados contra o solo frio, endurecido -, o de recolher, nas tardes que acabavam cada vez mais cedo, as cabras magras e ariscas para o cercado. O pesadelo continuava em suas tetas, sempre escapando das mãos, no esguicho incontrolável do leite e nas formas de queijo, que depois era preciso lavar na água gélida do rio. E o cheiro horrível que ficava nas roupas, por mais que as esfregasse? Pesadelo!
- É, Maryan... Acho que vamos ter de lhe arranjar outro trabalho – disse Effimon, ajoelhando-se ao lado dela. Um dos fundadores de Bryke, ele era o principal criador de cabras e queijeiro, o que não era de estranhar, pois já fazia esse trabalho nas Terras Férteis. Segundo Pylos, fora também o primeiro dentre eles a aceitar a carne oferecida pelos caçadores da tribo, e continuava a consumi-la sempre que havia oportunidade. Isso fizera Maryan olhá-lo com uma certa reserva, a princípio, mas agora simpatizava com seu jeito franco e direto, o brilho inteligente dos olhos e o sorriso fácil. A amizade, porém, não o impedira de apontar as falhas no seu trabalho – não por desleixo, apressara-se a afirmar, mas sim por completa falta de aptidão para aquelas tarefas.
- Alguns de nós não foram feitos para viver assim – disse ele, não pela primeira vez. Maryan lhe lançou um olhar de esguelha e não retrucou. Apenas ergueu o braço e bateu a peça de roupa contra as pedras, com toda a força, de forma a atirar partículas de espuma no rosto e no cabelo de Effi.
As sombras da tarde se alongavam quando deixou o rio. O cesto com a roupa lavada pesava sob o braço, mas mesmo assim Maryan decidiu passar primeiro pela oficina de cantaria. Pylos, que arrumava uma pilha de pedras junto com um aprendiz, sorriu e a saudou de longe, enquanto Narhi veio ao seu encontro, tendo em cada mão um copo cheio de um suco arroxeado.
- Como foi lá no Effi? – perguntou, enquanto Maryan provava a bebida. – O trabalho é difícil?
- Cansativo. Não me entendi muito bem com as cabras. – Torceu o nariz, examinando o interior do copo. – O que tem aqui? Amoras?
- Sim, e também bagas de urso, e framboesas, e uvas silvestres. Tudo que se encontra nos arbustos ao redor da aldeia. O que achou?
- Azedo – disse Maryan, e em seguida tomou um grande gole. – Mas não é tão ruim assim.
- É como a vida aqui em Bryke – disse a amiga, piscando o olho.
Maryan sorriu, cansada, e não respondeu. Não havia o que dizer diante desse tipo de comentário. Doce ou azeda, aquela era a realidade, ela teria que se adaptar se quisesse continuar ali. Principalmente achar uma ocupação em que se sentisse útil – e que, de preferência, não a deixasse dolorida, desgrenhada e enregelada dentro das roupas ainda cheirando a leite.
Momentos depois, Pylos deu o trabalho por terminado e dispensou o aprendiz. Narhi o ajudou a guardar as ferramentas e Maryan lavou os copos, após o que deixaram a oficina. Ficava aberta, como todos os locais de trabalho e produção em Bryke, sendo a única preocupação resguardá-la da chuva e da neve que cairia no inverno. Já a casa era mantida com a porta encostada, quando estavam ausentes – e a exclamação de Narhi, ao empurrá-la, fez Maryan saber que tinham visitas.
- Zendak! E... Anna! Mas que surpresa! – disse, em tom alegre. Maryan entrou em seguida e se deparou com o xamã sentado junto ao fogo, mexendo alguma coisa numa panela. Perto, de pernas cruzadas – e tendo no colo o livro subtraído por Zendak há dois dias - estava uma garotinha de quatro ou cinco anos, morena como a tribo, mas de aparência mais humana que élfica. Seu rosto, erguido para os recém-chegados, mostrava um sorriso tímido, que se ampliou ao ouvir o elogio de Narhi ao seu colar de contas.
- Foi Tikka que me deu. A avó fez flechas para ela – contou. – Ficaram muito boas.
- A avó dela é prima de Zendak – disse Narhi, dirigindo-se a Maryan – Nós conhecemos as duas na floresta, mas esta é a primeira vez que Anna nos visita. A que se deve essa honra?
- Vim devolver o livro – disse Zendak. – Mostrei para Anna, que gostou muito, mas fez perguntas que não sei responder. Acho que Maryan sabe.
- Perguntas? Que perguntas? – indagou a Mestra de Sagas. Foi como uma fórmula mágica: na mesma hora, a menininha se pôs a folhear o livro, apontando uma gravura aqui e outra ali enquanto desatava a tagarelar.
- Tem esses homens aqui. Viu só? Eles estão com lanças, mas Zendak disse que é um jogo e eu quero saber se eles são amigos e por que usam essa roupa engraçada. E aqui nessa folha tem um lobo com uma corda no pescoço. Ele está rosnando para um javali, mas se ele não se soltar o javali pode matar ele. Os dentes dele são muito...
- É um cão de caça – interrompeu Maryan.
Anna ergueu a cabeça e a fitou com olhos brilhantes, cheios de expectativa. Maryan se sentou a seu lado, no chão, e pegou o livro, pensando na melhor forma de explicar sobre cães e cavaleiros a quem jamais saíra da floresta.
- Você conhece lobos e pensou que este era um – disse, por fim. – Mas é outro animal: um cão. Nunca viu cães?
- Acho que não.
- Tudo bem. São animais que vivem perto das pessoas, como as nossas cabras, mas são parentes dos lobos e comem carne. Alguns são treinados para ajudar os homens a caçar. Eles estão assim, presos em coleiras – apontou – mas vão ser soltos logo, ou então os homens que estão ali perto vão matar o javali. Entendeu? Os cães ajudam os homens.
- Elfos também? –perguntou Anna.
- Não, elfos não costumam ter cães. Nem caçam, no lugar de onde eu venho. Só os que são das tribos, nas floretas como a dos Teixos.
- E tem outras florestas? – admirou-se a criança.
- Tem! Espere um momento. – Levantou-se, indo até a pilha de livros e escolhendo um volume. Sentou-se de novo ao lado de Anna e o abriu na primeira página, ilustrada com um mapa de Athelgard.
- Aqui, está vendo? Todos nós vivemos nesta terra, e nela existem florestas, montanhas e cidades. Eu vim desta aqui, Kalket, nas Terras Férteis. Agora, estamos na Floresta dos Teixos. – Pegou a mão da menina, fazendo-a acompanhar o trajeto. – É longe, não é? E, veja, tem outras florestas, e em algumas vivem tribos parecidas com a sua.
- E outras diferentes, como os Lobos Cinzentos e Ursos Negros – intrometeu-se o xamã. – Não se esqueça delas.
- Ora, não esqueci – replicou Maryan. – Só não posso dizer tudo de uma vez.
- E já disse muita coisa – sorriu Pylos. – Você se entusiasmou, Maryan. Até esqueceu que estávamos aqui.
- Entendeu por que dissemos que deve esperar pelas crianças e começar a escola? – perguntou Narhi. Maryan a encarou, tentando retrucar, mas, antes que conseguisse, já um dedinho curioso lhe espetava o braço.
- Como é que as pessoas sabem onde é para desenhar cada floresta?
- Xiii... Isso vai longe. É melhor comermos primeiro – disse Narhi. – O que você tem aí, Zendak?
- Cogumelos e algumas raízes. – Ergueu a panela, mostrando o conteúdo acastanhado e aromático. – Cozinhei com umas ervas para dar mais gosto.
- Ótimo! Vou pegar verduras. Pode trazer o pão e o queijo, Maryan?
- Claro, mas para vocês – disse a amiga, pondo-se de pé. – Já vi o bastante de queijo e leite por hoje.
- Imagino. – Narhi franziu o nariz. – Vai voltar lá amanhã?
- Não sei – respondeu Maryan, com um suspiro. – Creio que Effimon não ficou impressionado com o meu trabalho.
- Mas tem alguém que ficou – disse Pylos.
Inclinando a cabeça, ele apontou para Anna, que continuava concentrada no exame do mapa. Seu dedo corria sobre as linhas e, às vezes, os lábios se moviam, como se falasse consigo mesma. Não havia como ouvi-la, mas, conhecendo as crianças, Maryan sabia que estava fazendo perguntas, e que nem sua imaginação nem sua inteligência poderiam encontrar sozinhas todas as respostas.
E, conhecendo a si mesma, compreendeu que acabara de encontrar pelo menos uma ocupação para o inverno.
.....
É hora de dar uma respirada. Mas não se esqueça de voltar para a Parte 4!
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Mais uma vez a primeira a comentar, e antes que pensem que não faço outra coisa na vida, eu falo: eu faço. Principalmente trabalhar aos domingos...
ResponderExcluirBom. Concordo com a Maryan: leite de cabra é horrível. Nunca mais beberei aquilo!
Já a curiosa criatura (com duplo sentido) chamada Anna está cada vez mais engraçadinha, mostrando bem seu carácter.
Acho interessante mostrar o passado, ainda mais conhecendo o futuro.
Beijos.
Sua amiga.
Vânia
Obrigada pelo comentário, querida! Olha, de leite de cabra eu não sou fã, não. Mas de queijo... yummy!
ResponderExcluirPois é, a criaturinha era bem curiosa e, como você vê no conto, cresce cercada de adultos amorosos e atenciosos. Por isso, talvez, conserve muito de criança quando parte dali para o Castelo.
Leite de cabra é uma beleza mesmo, tia Ana, adoro! ;9
ResponderExcluirQue ocupação adorável para o inverno, hein, cuidar das respostas para a imensa pequena Anna de Bryke!
Beijão! =**********
Esse truque de usar a criança pra chegar na paquera é antigo, hein? Zadak, esperto! XD
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