domingo, 14 de outubro de 2012

Sino dos Ventos, Sino de Adeus


Quando ela saísse, os sinos tocariam pela última vez.

Thalia estava deitada sobre o colchão nu, vestindo as roupas que não chegara a tirar. Tinha passado a noite ali, sozinha, no quarto que Shanion desocupara havia apenas três dias – o quarto que ela visitara tantas vezes desde que o Mestre de Sagas viera para o Castelo. Tinham sido vários anos, ao longo dos quais ela se habituara a estar cercada por arcas elegantes e pela estudada desordem de livros e papéis. E, claro, também se habituara a Shanion: um amante pouco exigente, às vezes descuidado, mas sobretudo um amigo com quem ela podia conversar e falar com franqueza.

Foi numa dessas noites, naquele mesmo quarto, que ele lhe dissera que ia partir. E o dissera sem subterfúgios, como se fosse uma das coisas corriqueiras sobre as quais sempre falavam, aconchegados sob a manta de lã. Aquilo a atingira, embora ela soubesse que não havia razão. Como qualquer membro legítimo de uma Casa Nobre, Shanion devia agir de acordo com o que fosse melhor para a família e se casar com a pessoa escolhida por eles, como os irmãos de Thalia tinham feito tantos anos antes. Que ela própria houvesse rompido um compromisso para poder ascender aos últimos Círculos da Magia era apenas um detalhe, tão irônico quanto o fato da prometida de Shanion também ser uma maga. Casada, ela seria a senhora de um solar, mas nunca uma mestra da Escola de Riverast nem membro do Alto Conselho. Jamais lhe enviariam avisos através do fogo ou dos sonhos, nem as mensagens cifradas que, no Castelo das Águias, Thalia era a única a receber. Ela as partilhava com Camdell, porque entendia que ele também tinha esse direito, embora houvesse se afastado do Conselho na época da Cisão. Teria partilhado muito mais se ele quisesse. Mas até nisso, como em tantas outras coisas, Camdell era diferente de todos os seus amigos.

Um ruído seco, de madeira contra pedra, subiu até ela vindo do térreo. Rydel tinha acordado e aberto a janela. Sua voz límpida se fez ouvir em seguida, com a frase que ele repetia todas as manhãs. Eu te saúdo, lindo dia! Isso no sol ou na chuva, o que incomodava Shanion, para quem os seguidores de Odravas se mascaravam sob um estado de perpétua felicidade. Aquilo não era real, argumentava. Havia dias miseráveis, com chuva e vento; havia pensamentos mesquinhos e momentos de tristeza. Ele mesmo, quando lhe contou sobre a partida, não parecia feliz, já que preferiria ter escolhido ou ao menos sido consultado sobre a futura esposa. Por outro lado, reconhecia que precisava ir em frente, que não havia como progredir em sua posição na Escola de Artes Mágicas, onde tudo que se exigia de um Mestre de Sagas era que ensinasse os textos mais básicos a crianças desatentas.

Como se nada do que ficava para trás tivesse importância.

- É a coisa mais simples. Nem vou deixar instruções à minha sucessora – dissera ele, e olhara em torno, onde ainda estavam seus livros e outros objetos. – Aliás, não vou deixar nada, exceto os móveis que já estavam neste quarto. Ah, menos os sininhos de vento. Gosto tanto deles, e creio que não é exatamente um roubo. Ou eu deveria falar com o intendente? O que você acha?

- Acho que pode levar – disse Thalia, pouco à vontade. Por estranho que parecesse, naqueles anos que já durava sua amizade com Shanion ela também passara a gostar dos sinos, que ficavam pendurados diante da porta como um móbile. Tilintavam à menor brisa e soavam com uma bela melodia sempre que alguém entrava, o que a incomodara no início, pois fazia saber aos demais moradores da Ala Rosada que o Mestre de Sagas tinha companhia. Ele, porém, que geralmente era tão sério, só admitindo como arte o que estivesse dentro de seus elevadíssimos padrões – ele, Shanion de Ardost, se encantara por aqueles sininhos de louça colorida, delicada, porém barata, uma quinquilharia vendida por uma artesã humana no mercado de Vrindavahn.

E, por alguma razão que nem ela mesma saberia explicar, Thalia os escondera e os levara consigo na última noite que passara na Ala Rosada.

Os ruídos agora eram mais altos do lado de fora. A maga se levantou e foi até a janela, espiando por uma fresta o caminho de pedras que se via lá embaixo. Rydel estava saindo, com o cabelo faiscando ao sol e as orelhas aprumadas de quem jamais usara uma pedra de nobreza. Dois empregados passaram em seguida com um carrinho cheio de folhas secas, e fora de suas vistas aprendizes do Primeiro Círculo faziam a costumeira algazarra. Nada como aquela manhã, três dias atrás, quando as arcas e caixas de Shanion eram postas na carroça que o levaria embora para sempre. Naquele dia estava chovendo muito, e as despedidas tinham acontecido no refeitório, restando apenas o cocheiro contratado e seu ajudante para acompanhar a partida do Mestre de Sagas. Ela mesma lhe desejara boa sorte diante de todos os outros, depois de ter passado a noite em seus aposentos da Ala Amarela. Tudo para não estar com Shanion quando ele desse pela falta dos sinos.

E, tolo que ele era, não deduzira que aquilo fora obra de Thalia. Pouco mais tarde, após ele ter ido embora, ela soube que ele andara procurando pelos sininhos, que perguntara ao intendente e aos empregados se os tinham tirado do quarto e acusara os aprendizes de lhe pregarem uma peça. Para cúmulo de tudo, chegara a pedir ajuda aos magos do Castelo, mas todos eles tinham dado de ombros. Por fim, partiu, e Thalia ficou longe de seu quarto por duas noites, até voltar pé-ante-pé com os sinos embrulhados em um pano.

E agora eles estavam ali, tilintando à brisa da manhã, e soaram com mais força quando ela acabou de abrir a janela. Tinha fechado os olhos e tentava ignorar os outros sons, os risos e as vozes das crianças, o ranger das rodas do carrinho e o canto dos pássaros. Em sua mente só devia haver os sinos, um som que guardaria para sempre a memória de suas noites com Shanion. Fora um período bom, mas tinha acabado. Essa era a coisa certa em que acreditar.

Thalia exalou longamente o ar em seus pulmões e abriu os olhos. O quarto não era o mesmo, sem as arcas e os tapetes trazidos do solar da Casa Esmeralda e com as estantes nuas. Em uma ou duas luas elas seriam preenchidas com os livros da nova Mestra de Sagas, cuja chegada não apenas Camdell mas também Lara, Rydel e – por razões que só ele sabia – Kieran de Scyllix aguardavam com prazer e ansiedade. Que ela fosse feliz ali, pensou Thalia, desejando poder ser mais sincera. Que todos fossem felizes, principalmente Shanion em sua nova vida. Ela também voltaria a sê-lo tão logo deixasse aquele quarto.

Os sinos ainda soavam quando ela saiu sem olhar para trás.

...

Este conto se passa pouco antes da chegada de Anna de Bryke ao Castelo das Águias, para substituir Shanion como Mestra de Sagas. Ela ocupou o antigo quarto dele e herdou os sinos de vento. Mas não por muito tempo. :)

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17 comentários:

  1. Oi Ana,

    Finalmente Thalia fez alguma coisa como se tivesse carne e osso! Ela ainda é misteriosa para mim, mas, como disse em algum comentário, eu tenho previsões a seu respeito em meu grimório aprisionado no Solar em Bangladesh... Como ir a Bangladesh não está nos meus planos para os próximos três anos, não posso ter muita certeza, porém sei que devemos aguardar boas surpresas... Eu pelo menos aguardo.

    Beijos,
    Vania
    p.s eu sempre achei a Thalia esquisita.

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  2. Adorei o conto! Acho muito legal esses extras dos personagens dos livros que a gente lê.

    E eu não fiquei muito fã da Thalia XD

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  3. Você não ficou fã da Thalia no livro ou por ela ter escondido os sininhos do Shanion? :)

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  4. Lindo conto, Ana. Eu até "simpatizei" mais com a Thalia depois dessa. Afinal, como disse a Vânia, ela fez algo como se tivesse "carne e osso". Dá até impressão de que os sininhos são uma certa lembrança que ela quer guardar em relação ao Shanion.

    Agora também fico pensando que ela tinha um motivo a mais para implicar com a Anna, meio "sentimental" :).

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  5. Astreya, você tem certa razão quanto à Anna, mas eu acho que na questão dos sinos foi o contrário. O que de fato ela queria era tomar alguma coisa dele, privá-lo de algo, uma vez que ele levou dali tudo o mais que desejou e não pareceu lamentar o fim do relacionamento deles. Tanto que ela mesma não ficou com os sinos, mas os deixou na Ala Rosada, onde luas depois a Anna... você sabe. :)

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    1. Hehehehe, e eu puxando pelo lado romântico... eu também tinha pensado nesse lado de privá-lo de algo que ele gostava, pois tem mais a "carinha" da Thalia mesmo. Mas fiquei aqui viajando no cor-de-rosa XD.

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  6. Se bem que, puxa, a Thalia tem motivos para ficar chateada. O Shanion demonstrou mais apreço pelos sinos do que pelo tempo passado junto a ela, hunf XD.

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  7. "Como se nada do que ficava para trás tivesse importância"...

    Pois é. Mesmo dentro da filosofia de vida das Casas Nobres, eu acho que ela esperava um pouco mais de consideração da parte dele e parece que não houve muita.

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  8. Ana você é genial! Adorei o conto! Confesso que tenho simpatia por essa personagem =)

    Fico aqui pensando que talvez o Shanion quisesse levar os sinos para lembrar da Thalia sem que ela desconfiasse disso, como se ambos estivessem jogando em silêncio =)

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  9. Sinto muito, Angela, mas eu acho que não. Ele é tão imaturo e autocentrado quanto parece ser. :/

    Eu também gosto da Thalia. É uma pessoa que cresceu dentro de um sistema rígido e tenta ignorar o que sente para agir dentro dele.

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  10. Ah, desculpe... fiquei viajando demais na história =P

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    1. Hahahaha, eu também viajei, Angela. HÁ, não sou só eu que torce pelo poder do amor XD. Eu também simpatizo com a Thalia. Acho que crescer dentro de um sistema rígido ou que não permite certas personalidades é muito difícil, e a gente percebe uma certa "amargura" na personagem. Talvez ela deseje, no fundo, poder ser alguém diferente em algumas situações...

      Viajando aqui também.

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  11. Apesar do orgulho que sente por sua pedra de nobreza, bem no fundo a Thalia gostaria de ter as orelhinhas em pé como o Rydel... :)

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  12. A Thalia tem uma personalidade bastante interessante, basta ver a capacidade que teve em incrementar o debate! Vamos ver como ela se comporta nos próximos livros, quem sabe não teremos alguma surpresa?

    beijos,
    vania

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  13. Sempre desconfiei disso, Ana!

    beijos,
    vania

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