segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Promessas da Lua (Parte 4)


A fazenda da família de Teig era a última a contar da margem direita do rio e a mais próxima do centro de Glen Thar, se é que se podia chamar aquilo de centro. A aldeia não passava de um aglomerado de casas e oficinas divididas por uma única rua, no fim da qual havia uma trilha conduzindo ao templo de Thýrr.

Kieran ficou de longe vendo passar o cortejo formado pelas famílias de Bran e Brigid, acompanhados de alguns amigos mais próximos e precedidos por três músicos contratados para a ocasião. A cerimônia havia acabado e eles estavam descendo, entre canções e risadas, para continuar a festa na fazenda.

Segundo o costume, todos os vizinhos num raio de várias milhas tinham sido chamados, e para alimentá-los o pai de Teig matara dez porcos e quase uma centena de aves. Avaloch, o pai de Bran, contribuíra com três bois, cuja carne era assada em fogueiras ao longo da área reservada à festa. No centro havia uma mesa de pranchas de madeira, coberta com várias toalhas emendadas e enfeitada com fitas e flores, mas os bancos estavam reservados aos recém-casados e aos convidados mais importantes. No momento, a única pessoa à mesa era o pai de Doron, o General Gwil, que perdera ambas as pernas no campo de batalha. Sua dupla condição de aleijado e herói de guerra lhe dava direito ao lugar, bem como ao primeiro frango a sair tostado da fogueira. Por força do hábito, Kieran foi cumprimentá-lo, e enquanto o fazia Doron apareceu, com uma taça de cidra para o pai e um abraço para o amigo.

- Já estava achando que você não ia aparecer - comentou, esmagando afetuosamente as suas costelas. - Ficou bem a túnica, hem? Pena que é preta. Uma cor mais alegre talvez disfarçasse essa cara feia.

- Não há nada que eu queira disfarçar, Doron. O Teig foi para o templo?

- Foi, é claro. É a irmã dele que está se casando. E a maioria das garotas da redondeza fez questão de ir também. Angharad, Caitlin, Moll, Alix... E, por falar nisso, onde está Seril? Não diga que não conseguiu tirá-la de casa!

- Não tentei muito. Ela disse que não se sente à vontade em festas.

- Ora... Mas ela dança tão bem! - fez o outro, desconcertado. - Com quem vou me divertir agora?

- Com Caitlin. - Da mesa veio a voz roufenha e brincalhona do General. - Se dançar com ela na festa, quem sabe também consegue dançar depois no celeiro.

- É...! Boa ideia! - exclamou Doron, com uma risada. Inclinou-se, em seguida, para envolver o General pelo ombros, e o rosto de Kieran se contraiu diante da cena de carinho entre pai e filho. Havia muitas coisas que ele tinha de disfarçar.

- Você disse que Alix está vindo do templo com as outras moças - falou, fingindo inspecionar as mangas da túnica. - Será que o Mão de Ferro vem com ela?

- O Mão de Ferro, hem? Já vi que você está tramando alguma - riu Doron. - Bom, mas isso vai ter que esperar. Você não viu, porque saiu antes, mas Declan se empenhou tanto no treino de armas que Mestre Rory o mandou ficar e ajudar os mais novos. Termina bem tarde, por isso ele só vai chegar aqui pela meia-noite.

- Isso se ele ainda vier - disse Kieran, com os lábios apertados.

- Ah, mas claro que vem! Quem deixaria de vir... e de dançar com uma coisinha daquelas?

Fez um gesto na direção do cortejo que acabava de passar entre duas fogueiras. Ainda estavam rindo e dançando, mas já não vinham enfileirados como ao descer a trilha, e sim em pequenos grupos que, aos poucos, foram se misturando com os demais convidados. Alguns tinham passado à frente dos músicos, e entre eles os rapazes viram Alix, de cabelo castanho preso numa trança e um vestido vermelho apertando as formas esguias.

- Kieran! Doron! Vocês perderam uma bela cerimônia! - exclamou Teig, avançando para se juntar aos amigos. - Preste Daffyd estava muito inspirado. Recitou uma saga inteira do Etta.

- Não deve ter sido tanto assim - disse Kieran, fazendo de sua voz um ímã para os olhos de Alix. A moça se voltou, sem entender o impulso que a levara a isso, e suas faces se tingiram de vermelho ao perceber a intensidade com que ele a observava.

Mael de Scyllix era da opinião de que os magos não têm sorte no amor. Para Kieran, aquilo vinha se mostrando verdadeiro: com seu nariz grande demais e a cara fechada, ele não era olhado com interesse pelas garotas, e até hoje só estivera com as fáceis, que se deitavam com os rapazes nos montes de feno e não os importunavam com lamúrias depois disso. Quase todas eram filhas de meeiros humildes, sem expectativas a não ser a de se casar com homens pobres como seus pais; as que tinham mais posses eram vigiadas pelas famílias, e os namoros só eram permitidos quando havia certeza de que resultariam numa união vantajosa para todos.

O herdeiro de uma fazenda modesta como a Fonte Âmbar dificilmente seria considerado um pretendente à altura de Alix, mas as coisas mudariam dentro de alguns anos, quando Kieran se tornasse o Mestre das Águias. Aí poderia ter a mulher que quisesse. Neste momento, porém, nem sua posição, nem seus dotes físicos representavam um grande atrativo, e, por isso, ele teve que usar a única arma ao seu alcance.

Magia.

- Há quanto tempo não nos víamos... Você mudou - disse, cada palavra um fio da rede que tecia em torno dela. Estava sendo muito mais fácil enredá-la do que ao grupo de Declan.

- Ei, o que há com vocês dois? Parece até que acabaram de se conhecer! - Doron, o intrometido de sempre. - Mas Kieran tem razão, Donzela Alix. Você mudou, cresceu... e, sem ofensa, ficou muito bonita. Quer que eu lhe traga uma taça de cidra?

- Não... quer dizer, agora não, obrigada - disse a moça, piscando a fim de conseguir desviar os olhos. Ao redor deles, os convidados pareciam cada vez mais numerosos, o som das vozes e dos risos abafando a música que, no entanto, continuava a se fazer ouvir no fundo de tudo. Mais tarde, quando os brindes e os discursos tivessem sido feitos e saciados os primeiros apetites, as danças começariam, e então aquele som iria crescer, destacando-se dos demais ruídos da noite para envolver os corpos e os corações. Era a atmosfera perfeita para um encanto amoroso.

Kieran deixou que Alix se afastasse e se reunisse às amigas. Ele mesmo permaneceu ao lado de Doron e Teig, partilhando uma caneca de vinho e uns pedaços de carne. Na mesa havia outras opções – sopas, empadas, doces - mas os rapazes preferiam ficar perto do fogo, cuja luz lhes permitia ver e ser vistos pelas moças. De onde estava, conversando e comendo bolos de uma travessa sobre a mesa, Alix se voltou várias vezes à procura de Kieran, e a cada vez ficava mais inquieta, seus dedos torcendo nervosos a ponta da trança. Doron, naturalmente, não percebeu nada, mas Teig acabou por notar a troca de olhares. E, para a surpresa do amigo, reagiu como se aquilo lhe dissesse respeito.

- O que há com Alix? Ela não pára de olhar para você - resmungou, com o cenho franzido. - Você disse, ou fez alguma coisa a ela?

- Eu não – Kieran encolheu os ombros.

- Vai fazer com o Declan - disse Doron, em tom cúmplice. - Aposto que vai. Sei muito bem quando ele está para aprontar alguma.

- Sim, mas... Alix não sabe - tornou o outro. - Parece estranho... que ela olhe tanto assim para um de nós.

- Pois é, talvez seja você e não eu - replicou Kieran, torcendo habilmente os fatos. - Gostaria que fosse assim?

- Que Alix me olhasse? É claro - disse Teig, com um brilho nos olhos. - Só que agora não adianta mais... depois que Declan disse a todos que ia pedi-la, e que ela aceitaria...

- O quê...? Você estava gostando dela? - fez Doron, com assombro. Kieran cruzou os braços e prestou atenção: também para ele aquilo era novo. Teig, porém, negou que estivesse apaixonado por Alix, embora admitisse que não conseguia imaginar ninguém melhor para ter ao seu lado.

- Vocês entendem, não é dela que eu gosto, mas queria alguém como Alix - explicou. - Uma moça de boa família, que saiba dirigir uma fazenda e tenha saúde para me dar muitos filhos. E, além disso, bonita como ela. Vocês não querem a mesma coisa?

- Eu sim, é claro - disse Doron. - Mas esse aí já não sei. Os magos podem casar?

- Podem. Mas a maioria prefere ficar só - respondeu Kieran, sem olhá-los. Uma imagem estranha e fugaz acabara de atravessar sua mente. De quem seria aquela cabana meio arruinada, cercada por árvores, com os topos brancos de neve? O que o levara, tão subitamente, a ter uma visão do Norte longínquo?

- Eu acho que você faria bem em casar - disse Doron, sem notar sua confusão. - Mas não agora. Mais tarde. Depois que você tiver acabado de ler todos aqueles seus livros e se divertido bastante. E por falar em diversão - esfregou as mãos enormes - como é que vamos fazer hoje? Com quem você vai dançar: Deirdre, Moll ou Caitlin?

- Alix - disse Kieran, e ante a estranheza dos amigos acrescentou: - Eu vou dançar com Alix, depois dos brindes, antes da chegada do Mão de Ferro.

- Está maluco? Não faça isso! Ele vai atrás de você! - disse Teig, aflito. - Não aqui, talvez, nem na Escola de Guerra, mas em alguma emboscada. Lembra da última vez em que vocês lutaram?

- Lembro - disse Kieran, levando a mão às costelas. - Mas desta vez vai ser diferente.

- Se for para brigar, conte comigo - ofereceu-se Doron. - Vale a pena sair no braço se eu puder ver a cena... o Mão de Ferro chegando à festa e vendo a futura mulher às voltas com seu pior inimigo.

- Ele vai brigar com Alix também - disse Teig. - Já pensou nisso, Kieran?

- Não... porque não tem a menor importância. - Flexionou os músculos, sem ligar à expressão magoada de Teig. - De qualquer forma, não sei se Declan vai chegar a tempo. Seu pai e o Preste já fizeram os brindes, e agora é a vez de Avaloch. Daqui a pouco todos vão se fartar de comer e começar a dançar. E eu não vou passar a noite inteira com Alix.

- Hum, é... Assim, pode ser - disse Teig, um pouco mais calmo. À mesa, iluminada por tochas presas em estacas a pequena distância, Avaloch fazia seu discurso, o vinho se agitando e respingando para fora da taça que ele erguera em homenagem a Bran e Brigid.

- Por mim, ele teria esperado uns anos - dizia, com a voz forte usada para apregoar seus bois e a carne deles na feira. - Mas o rapaz é como eu, um bom fazendeiro... e, uma vez semeado o campo, faz-se a colheita! E todos nós estamos felizes por isso!

- Colheita, campo... Daqui a pouco vai dizer que minha irmã é uma vaca de leite - observou Teig, com azedume.

- Bom, quando a criança nascer... Ei, não leve tão a sério! - exclamou Doron, defendendo-se do soco que o atingiu no queixo. Meio irritado, meio risonho - mas sinceramente arrependido - ele segurou os pulsos de Teig, jurou que não pretendia ofender Brigid, e enquanto os dois acertavam as diferenças Kieran aproveitou para se afastar. Foi em boa hora, pois os brindes estavam no fim, e, após uma última taça bebida em honra dos recém-casados, os músicos se puseram a tocar mais alto.

- É isso mesmo! Agora estão amarrados, não tem mais jeito! - exclamou, entre risadas, Donnell, o pai de Brigid. - Vão dançar, filhos... e vocês também, vizinhos, se já tiverem enchido a pança. E a senhora vem comigo, Dama Wyn! - acrescentou, puxando a mulher pelas mãos.

Entre os aplausos e risos dos convidados, o casal começou a dançar, e a cada volta mais e mais pares foram se juntando a eles. Com seu cabelo encaracolado, o rosto quase de menino aberto num sorriso, Bran puxou sua jovem esposa, e logo vieram Avaloch e a mulher, a tia viúva de Brigid e o Preste Daffyd, casais de todos os jeitos e idades girando ao som alegre da rabeca. O flautista fizera uma pausa, mas o tambor marcava o ritmo, e o som pulsava dentro das veias de Kieran quando ele se aproximou de Alix.

- Vamos dançar. - Uma ordem, não um pedido: nesse momento, ele tinha poder sobre ela, e sem contestá-lo a moça aceitou sua mão. Kieran a conduziu para o meio da roda e a enlaçou, seus olhos mergulhando nos de Alix como águias sobre a presa.

- Kieran. - Num sussurro, num fascínio, ela murmurou seu nome. Ele se inclinou a fim de prosseguir com o encanto - dizer as palavras, beijá-la - mas o cheiro de seus cabelos, ervas e rosas silvestres esmagadas, o envolveu como uma nuvem, passando numa fração de instante do olfato aos outros sentidos.

O frio. Os gritos no interior da floresta. O gosto de sangue na boca, acompanhando mais uma visão.

Quase tudo era sombra, os ecos indistintos de um passado de fogo e guerra. Entre as árvores, homens e cavalos, mulheres que corriam e caíam sobre as folhas da Primavera, a vinte passos da cabana que ardia em chamas. Um piscar de olhos e a imagem mudou, regressando ao presente: a mesma choupana, com o teto enegrecido e coberto de neve como estivera em sua primeira visão. Agora, porém, seus olhos foram capazes de enxergar além das paredes finas - e lá dentro, à luz das brasas que restavam de um fogo esmaecido, ele viu as formas de uma mulher que segurava um bebê.

Agachada junto à lareira, ela sacudia os ombros como se chorasse, e suas feições não eram visíveis. Kieran tinha certeza de que não a conhecia, mas mesmo assim sentiu-se invadir por um calor estranho, um misto de ternura e piedade que não se lembrava de ter experimentado. Com os olhos da mente, ele buscou o seu rosto, mas em vez disso encontrou o da criança; e para seu espanto o bebê abriu um par de enormes olhos oblíquos, fitando-o como se também pudesse vê-lo, enquanto, ao longe, ele ouvia a voz cristalina de uma mulher.

Kieran... Faça aquilo que você sabe que é certo...

- Kieran? - chamou Alix, apreensiva diante de sua expressão. Ouvindo-a, ele piscou, percebendo que tinha parado de dançar e que o elo entre ambos havia enfraquecido. Reforçá-lo foi questão de instantes, mas dessa vez ele agiu com menos certeza, o peito se apertando com a lembrança da voz tão doce a chamá-lo pelo nome.

Kieran... Faça o que é certo...

- Vamos sair daqui - disse ele, quase ríspido, puxando Alix pela mão. Ela o seguiu para fora do círculo, tropeçando em seus próprios pés para acompanhá-lo, tão rápido ele se afastava da música e dos fogos. A meio caminho, porém, Kieran se deteve, considerando pela primeira vez o olhar dos vizinhos ao seu redor. Ele não podia simplesmente pegar a moça e levá-la consigo.

- Volte para a festa - instruiu-a. - Deixe tocarem mais duas ou três músicas. Quando ninguém estiver prestando atenção, venha me encontrar.

- Onde? - perguntou Alix. O primeiro lugar que ocorreu ao rapaz foi o celeiro - o abrigo invariável dos casais, lícitos ou não, em noites como aquela - mas depois de pensar um pouco ele prometeu esperá-la no pomar, junto às macieiras, onde a Lua devia estar mais bonita. Alix regressou para junto dos outros convidados e Kieran foi em frente, passando pela última fogueira, junto á qual se postava a figura pequena e rígida de Teig.

- Ora, ora... Afinal, você dançou mesmo com Alix - disse ele, de braços cruzados. - Vamos ver o que o Mão de Ferro vai fazer quando souber. Provavelmente chamar Lýr e Dylan para quebrar metade dos seus ossos.

- Bom, se eu tiver que acertar contas com ele, que seja hoje mesmo - disse Kieran. - Logo mais, quando ele aparecer, diga-lhe para ir até o pomar. Eu vou estar lá, esperando por ele, e então vamos nos entender de alguma forma.

- Você vai se entender com Declan? Queria ver isso - respondeu Teig, mas mesmo assim encolheu os ombros. - Está bem, eu dou o recado, mas se ele for até o pomar Doron e eu vamos atrás. Não podemos deixar você sozinho com aquele sujeito.

- Não vou estar sozinho - murmurou Kieran, deliberadamente baixo demais para que Teig o ouvisse. Sem olhar para trás, ele seguiu seu caminho, contornou o celeiro e os estábulos e rumou para o pomar, por uma vereda onde, mesmo com o frio e a seca do Inverno, já se podia sentir o cheiro vivo das árvores.

Leia a parte 3 clicando aqui

E vá para o epílogo clicando aqui

4 comentários:

  1. Oi, Ana,

    Será que a gente chama aquilo de visão ou pressentimento? Uma criança, nascida em uma floresta... Bom, será que isso influenciará a tal vingança? Ou o futuro desse mago tão misterioso?

    beijos,
    vania

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  2. É uma visão. A primeira das que irão acompanhar o K. ao longo da vida. Quem ler os livros saberá do que estou falando. :)

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  3. Oi Ana,

    Eu sei a resposta. Andei consultando uns oráculos que adoram falar com as mãozinhas, você conhece?

    beijos,
    vania
    p.s já li o Castelo, e lerei todos os outros que você escrever.

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  4. Hola guapa, me gustan tus textos, un placer.
    te dejo mis saludos desde Valencia.
    feliz semana.

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