domingo, 1 de março de 2015

Depois da Invasão (Parte 1)

               


              Quando ela abriu os olhos, tudo era dor.
            Uma nuvem escura, como de tempestade, aparecia pelos rombos do teto, onde a palha fora arrancada. No interior da cabana, os poucos móveis e utensílios jaziam por todo lado, junto com as roupas amarfanhadas e sujas de sangue. Estava seco, à exceção de uma pequena poça no chão, ao lado do rosto de Kyara.
Um instinto muito antigo a fez tocar aquele sangue com os dedos. Era viscoso, com um cheiro familiar que ela só reconheceu quando mexeu a cabeça. A dor cresceu como uma onda a partir da nuca, enquanto do lado de fora uma voz insistia em gritar:
- Mãe! Mãe!
Com esforço, apoiando-se nas mãos, Kyara se sentou e olhou para a filha, que acabara de entrar na cabana e corria para se ajoelhar a seu lado. Quis então perguntar por que Anna (*) tinha o rosto sujo e o vestido rasgado, mas, antes que pudesse falar, a moça lançou os braços ao seu redor e irrompeu em soluços.
- Você está viva, mãe. Eles foram embora – disse, e repetiu como se não acreditasse. – Eles foram e deixaram você viva.
- Sim, minha querida, não chore – sussurrou Kyara. Ainda não se lembrava de tudo, mas podia perceber o essencial, principalmente o que tinham feito com sua filha. Isso a fazia querer consolá-la, esquecendo de si mesma e de sua dor para embalá-la como a uma criança. Foi a própria Anna que, por fim, notou o ferimento em sua cabeça.
E, enquanto ela o lavava e enfaixava, Kyara começou a se lembrar.
Eram vários homens, soldados ou, provavelmente, mercenários a serviço de Siberlint, a cidade do extremo Norte que declarara guerra a Pengell. Quatro noites atrás – nem uma Lua transcorrera desde a morte do seu Raymond – eles tinham invadido o lar do antigo guarda-caça, e ali ficaram durante todo esse tempo, brigando, jogando dados e se encharcando com o vinho ordinário que tinham trazido. A cabana fora dilapidada, bem como as reservas de comida, mas aquilo não foi nada perto do que fizeram às mulheres. Anna, principalmente, que era jovem e meio-humana, com o corpo cheio de curvas que enchiam os olhos daqueles homens brutais. Que um corvo os arranque, pensou Kyara, cerrando os dentes e as mãos.
- Fique parada. Não vai demorar. – Anna atava a faixa em torno de sua cabeça. – Pena não termos nada com que fazer um remédio.
- Por que eles me deram essa pancada? Disso não consigo lembrar.
- Por nada. Pura maldade – disse a moça. – Foi aquele meio vesgo, que cuspia por todo lado. Quando estavam saindo, cuspiu também em você e a acertou com o cabo da lança. Falou: “Pra você, elfa maldita!” ou coisa assim. Você caiu e eu comecei a gritar, mas me arrastaram para fora. Tinham a intenção de ir até o povoado e queriam que eu os guiasse, além de servir de refém. Mas mudaram de ideia quando viram alguns soldados de Siberlint mortos pelo caminho.
- E para onde foram então?
- Não sei. Mas desistiram do povoado, pois acreditam que esteja defendido pelos homens do Barão. Eu duvido: para mim todos os homens foram mandados como reforço a Pengell ou estão no castelo, e a maioria deve ter morrido assim como o pai. Mas é claro que não ia dizer isso.
- Claro que não. Você é esperta – disse a mãe, sentindo o orgulho assomar apesar da dor. Anna sorriu com amargura e não disse nada. Lá fora, a trovoada rugiu, a tarde cada vez mais abafada sob as nuvens. Logo choveria.
- Temos que consertar o teto. – Kyara olhou para cima, depois ao redor. – Temos que fazer tanta coisa. Nem sei por onde começar.
- Acho que devíamos ir até o povoado – disse Anna. – Ver como está, saber o que houve. Eu teria ido se não fosse a preocupação com você.
- Por quê? Ninguém veio saber o que houve aqui – resmungou a elfa. – E se o lugar estiver ocupado por homens de Siberlint?
- Observamos de longe. Você sabe como ir sem ser vista – respondeu a filha. – Se houver invasores no povoado, voltamos e nos escondemos na floresta. Se não, vamos tentar ficar por um tempo na casa de Ethel ou na do velho Wilf. Ele era amigo do pai – acrescentou, vendo Kyara franzir o cenho. – E, de toda forma, será melhor ficar lá do que aqui. Não temos comida, e a cabana é visível para qualquer um que se afaste cem passos da estrada.
- Então a floresta seria melhor. Mas você tem razão. – Kyara apertou os lábios. – Talvez, no povoado, tudo esteja bem e possamos ter alguma ajuda. Você precisa de roupas e... bom, algum tipo de ungüento – completou, desviando o olhar do vestido de Anna. De todas as marcas da violência, nenhuma era mais difícil de encarar do que aquelas manchas de sangue.

*****

Continua... 

(*) Para os não-familiarizados com a saga: esta não é Anna de Bryke, protagonista dos romances, mas sim sua mãe, filha de Kyara e Raymond, que tinha o mesmo nome. 

Parte 2

2 comentários:

  1. Pobre Anna! E pobre Kyara também! Pelo menos a gente já sabe que dessa tragédia virá algo muito especial. Adorei o início do conto, Ana, muito instigante. Estou acompanhando! \o/

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