domingo, 11 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 1


Pessoas Queridas,

Hoje começo a postar uma novela para os leitores do blog e, simultaneamente, no Wattpad. Ela se passa no inverno seguinte àquele em que Anna e Kieran regressaram da Ilha dos Ossos; estão de volta ao Castelo das Águias, convivendo com mestres, aprendizes e amigos da cidade de Vrindavahn. Sigam os links para conhecer (ou lembrar de) algumas dessas pessoas e situações.

Espero que curtam, comentem e chamem os amigos! :)


       -- Acho que o Nils nunca soube, mas fiquei de olho nele desde que entrou para o serviço do Castelo. Ele já era cocheiro antes, mas trabalhava para um mercador e viajava muito, por isso comia mal e estava sempre com dor de barriga. Ela não funcionava, sabe? E ele às vezes parava o que estava fazendo e ficava ali, sem soltar um ai, mas com aquela cara de sofrimento, até que a dor melhorasse e ele pudesse voltar ao trabalho. Acho que gostei dele por isso: porque fazia o que tinha fazer. Não se queixava nem se aproveitava da bondade do Senhor Theoddor para ficar encostado... Mas, Mestra Anna, o que está fazendo? O creme vai dentro da massa e não por cima, lembra?
       Pisquei, olhando para a bandeja à minha frente, e assenti. Netta balançou a cabeça, como se dissesse que eu não tinha jeito, e foi mexer a sopa enquanto eu consertava os doces de amêndoa. Não falou mais, talvez porque soubesse que sua história tinha me envolvido e me levado a cometer o erro, e eu contive minha curiosidade pela mesma razão. Bom, pelo menos até que os doces estivessem prontos.
       -- Continue, Netta. – Levantei-me, segurando o tabuleiro. – Como foi que você chamou a atenção de Nils? E foi você que o ajudou com aquele problema?
       -- Ah, as coisas foram acontecendo – disse ela, dando de ombros. Deixou o caldeirão em fogo baixo e me seguiu até perto do forno, onde dançavam chamas alegres e cujo calor fazia esquecer o inverno úmido e sombrio lá fora.
       -- Cuidado para não se queimar – recomendou Netta. – Agora é deixá-los pouco menos de uma hora. Vou manter o fogo alto, e quando vocês acabarem de jantar os doces estarão prontos.
       -- Não se esqueça de separar alguns para o Kieran – pedi. – Ele não vai comer até o meio-dia de amanhã.
       -- Eu sei. Ele, Mestre Finn e Mestra Thalia. Ah, que tristeza eu sentiria se fosse casada com um desses magos. Imagine, passar o dia cozinhando para depois não poder alimentar meu marido!
       -- Mas pode alimentar o seu – insinuei, querendo trazer a história de volta. – Aposto que Nils melhorou comendo o que você preparava. Acertei?
       -- Deve ter sido. Ah, mas já faz tanto tempo... E veja só, a sopa está borbulhando! Lori, o queijo! – gritou ela para sua ajudante, que estava no extremo oposto da cozinha.
       -- Num instante! – veio a resposta.
       -- Ande rápido, que os meninos devem estar morrendo de fome! – disse Netta, voltando a mexer a sopa. Com a destreza conseguida em anos de prática, ela passou várias conchadas para um recipiente menor, depois fez um sinal para dois empregados do Castelo, que tinham chegado momentos antes e se achavam a postos. Eles ergueram o pesado caldeirão de ferro, passaram por Lori, que atirou lá dentro várias mancheias de queijo em fatias, e seguiram para o refeitório, onde foram recebidos com vivas pelos aprendizes agasalhados até as orelhas.
       -- Vá jantar, Mestra Anna. Os outros mestres já devem estar esperando – disse Netta, que agora se ocupava de uma enorme panela contendo frango cozido. – Ida já está quase saindo daqui com a sopa.
       -- Vou, sim, mas outro dia quero acabar de ouvir a história – repliquei. Ela fungou, de costas para mim, e não disse nada. Acenei para Lori, que ria abafadamente no seu canto, e para Ida, a moça que esperava para servir nosso jantar, e deixei a cozinha, seguindo o corredor que conduzia à sala de reuniões.
       O aposento amplo, mobiliado com elegância sóbria, onde discutíamos questões da Escola e dos alunos era também onde costumávamos jantar. Quase sempre fazíamos as duas coisas ao mesmo tempo. Hoje, porém, a conversa prometia ser mais amena, pois três dos sete mestres de Magia estavam ausentes, envolvidos com a orientação dos aprendizes do Terceiro Círculo. E como quase sempre acontecia nessas ocasiões, Urien se achava impaciente à minha espera.
       -- Hoje o ranzinza do seu marido está ocupado – disse ele, de forma que só eu o escutasse. – Vamos aproveitar o tempo?
       -- Podemos. Mas Kieran não é ranzinza.
       -- Como não? Ele tem muitas qualidades, admito, mas é também um rabugento de primeira – declarou Urien, e então ergueu a voz. – Ah, lá vem a sopa! Nada melhor numa noite fria como esta!
       -- Nem me diga – suspirou Rydel. – Eu tinha uma festa para ir em Vrindavahn, mas Benios desistiu. Não quis andar pela cidade debaixo da chuva, mesmo não estando muito forte. E não quis vir passar a noite comigo. Acho que o frio desencoraja as pessoas.
       -- Isso aqui, nas Terras Férteis. No Norte há grandes festas e encontros que acontecem no inverno – tornou Urien, servindo-se da sopa onde boiavam fios de queijo derretido. – Festas das boas, com salões decorados, muita bebida, malabaristas, bardos...
       -- É que as pessoas ficam mais próximas – comentei. – A nossa tribo, por exemplo, se reúne muito mais no inverno, porque é difícil achar caça e fazer qualquer coisa ao ar livre. Então visitamos uns aos outros, sentamos ao redor do fogo e comemos carne seca e frutinhas que guardamos no outono. E, nessa mesma época, os homens fazem as festas de que Urien falou, em suas cidades e castelos.
      -- Então é um hábito do Norte – concluiu Rydel.
      -- Sim, mas eu diria que é mais um hábito do inverno -- ponderei. -- Todas as tradições falam dessa estação como propícia ao recolhimento, mas também a esse retorno ao seio da família e ao convívio com os amigos. E isso em todas as regiões de Athelgard. Só que o frio aqui no Sul não é muito grande e não interrompe as atividades de ninguém. As pessoas se sentem obrigadas a fazer o que fazem sempre. Mesmo que sua vontade fosse se aconchegar umas às outras e ficar contando histórias.
       -- É, acho que tem razão. Que pena, poderíamos cultivar esse hábito aqui em Vrindavahn – disse o elfo.
       Assenti, e a conversa tomou outros rumos, mas aquelas palavras ficaram dando voltas em meus pensamentos. Logo acharam um canto onde germinar, embora ainda em silêncio, como sementes no solo de inverno. Aquele frio úmido, que incomodava tanto as pessoas das Terras Férteis, que enfarruscava os ânimos no Castelo das Águias e fazia da alegre Vrindavahn uma cidade parada, quase monótona... Todos o enfrentariam melhor se ficassem mais próximos, como se deve estar nas noites frias. E o que eu, a Mestra de Sagas, podia fazer a respeito?
       Não era preciso pensar muito para achar a resposta.
       O jantar seguiu sem novidades, culminando nos deliciosos doces de amêndoa que Netta me ensinara a fazer. Lara se retirou assim que terminamos, depois foi a vez do Mentor Camdell, e logo todos os professores haviam se despedido. Acompanhei o mestre de Música até a Ala Verde, como havíamos combinado, mas, quando chegamos à sua sala de trabalho, foi a minha vez de surpreender Urien com uma proposta em voz baixa.
       -- Antes de começarmos, quero falar sobre uma ideia que tive. Não é uma coisa muito grande, nem difícil, mas não posso fazer sozinha. Você me ajuda?
       -- Só um momento. – Ele pegou uma garrafa que estava atrás de um estojo de alaúde, aparentemente escondida, e se serviu de uma taça de vinho antes de se sentar à minha frente. – Pronto, sou todo ouvidos. E mesmo antes que fale, já sabe, pode contar com minha ajuda. A não ser que seja alguma coisa muito perigosa, como tirar um urso da toca.
       -- Isso eu já fiz e não vou fazer de novo – repliquei, e me inclinei para diante. – Escute com atenção, e depois me diga... O que acha de promovermos uma grande noite de sagas?

****

(Continua...)

Parte 2

Imagem: Natureza morta na cozinha, óleo sobre tela de Floris Gerritsz van Schooten. (Haarlem, ca. 1590 - 1655)

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