sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 2


     -- Deixe eu ver se entendi, Mestra Anna – disse Andi, com a testa franzida. -- É para todo mundo no Castelo? Todos mesmo?
     -- Todo mundo – confirmei. – Mestres e aprendizes da Escola, os artistas e artesãos que vêm trabalhar na Ala Violeta e os empregados, residentes ou não. É para toda a nossa comunidade, como se fôssemos...
     -- Uma tribo – completou Freydis, olhando-me com ar cúmplice.
     Assenti, feliz por ter alguém que me entendia sem lançar mão de algum encanto de Magia do Pensamento. Os aprendizes mais velhos faziam isso às vezes, comigo, com os mestres de Ciências do Céu e da Terra e todas as demais pessoas da Escola que não possuíssem o Dom. Não era por mal, apenas uma forma de praticar o que sabiam e testar a si mesmos. Ainda assim, eu tinha dito a eles que não gostava daquilo, e Kieran transformou minha queixa numa proibição, de forma que, agora, era muito raro alguém se arriscar a ler a mente da Mestra de Sagas.
     Freydis não tinha como estar nesse caso. Ela mal chegara ao Segundo Círculo do aprendizado e nem sequer nascera com o Dom, embora Finn e Kieran tivessem poucas dúvidas de que iria desenvolvê-lo. Sua percepção a meu respeito vinha da observação e da empatia, pois tínhamos muito em comum, apesar das diferenças de posição e de idade. E, apesar de ter dois grandes amigos com quem contar em todas as ocasiões, havia alguns segredos que ela preferia partilhar apenas comigo.
     Os meninos eram diferentes, embora também adoráveis, cada um a seu modo. Orm era corajoso e um pouco bravateiro, assim como Freydis, porém mais prático e tranquilo do que ela. Já Andi, o meio-humano, era talentoso e criativo, mas tinha um temperamento hesitante e costumava imaginar que tudo acabaria em catástrofe. Os mestres do Primeiro Círculo tinham um cuidado especial ao falar com ele, para não intimidá-lo, e eu tinha pedido o mesmo a Kieran. Ele prometeu que teria cuidado, ao mesmo tempo afirmando que o menino não ficaria muito mais tempo no Castelo das Águias. Com tanta imaginação, tanto jeito para a música e a poesia, era provável que logo regressasse a Kalket, sua terra natal, e entrasse para uma das escolas bárdicas – de onde, aliás, Andi jamais dissera por que tinha saído.
     Se eu pudesse fazê-lo contar essa história, seria uma vitória para nós dois.
    -- Vai ser uma noite especial, mas preciso de ajuda, tanto para convidar as pessoas quanto para convencê-las a participar do jeito que estou pensando – disse eu para os três, mas principalmente para Andi. – Claro que vou contar histórias, Urien também, e vamos ter muita música feita por ele e os aprendizes, mas em dado momento quero ouvir algumas contadas pelos convidados. Vocês poderiam começar, pois estão acostumados a fazer isso nos nossos encontros.
     -- Claro! Vou contar a história da Menina Foca – prometeu Freydis, mas em seguida franziu a testa. – Ou uma diferente seria melhor?
     -- Podia contar alguma história das Terras Geladas, da família do seu pai. A de sua avó, com o unicórnio da neve, seria perfeita – disse Orm.
     -- Hum, eu sei como é essa história, mas não me lembro dos detalhes. Vou perguntar ao paizinho. Aliás – Freydis voltou para mim seus olhos escuros, cheios de expectativa --, sei que é para as pessoas do Castelo, mas será que eu poderia chamar meus pais, e talvez o tio Joot? Eles adoram ouvir histórias. Podem até se animar a contar as deles, como você quer.
     -- Se eles puderem vir, quero chamar minha família também. Pelo menos meu avô – disse Orm.
     -- Hum... Bom, está certo. O Comandante Owen pode vir, e seus pais também, Freydis – disse eu, sabendo que isso significava que eles trariam os agregados: Joot, o velho pescador das Terras Geladas, e Bran, um jovem piloto que se tornara uma espécie de filho adotivo. –- Mas vamos evitar trazer mais gente de fora, pelo menos desta primeira vez. Se tudo der certo e, claro, se o Mentor concordar, poderemos ter de vez em quando uma Noite de Sagas com mais convidados. Mas, por agora, bastam os que são ligados ao Castelo.
     -- Certo! Pode contar com a gente – disse Freydis, animada. – Eu vou falar com os outros aprendizes. Orm pode falar com os empregados, todos gostam muito dele, principalmente o pessoal da cozinha. E Andi, com os mestres e ajudantes da Ala Violeta.
     -- Sim, senhora, minha Comandante! – exclamou Orm, o que lhe valeu um belo soco no ombro.
     -- E quero ouvir uma história sua, Andi. Você é um dos meus melhores aprendizes – falei, prestando atenção à reação do menino. – Gostaria que incentivasse os demais.
     -- Ah... Eu, bom... Olhe, eu posso tocar – disse ele, com as faces levemente vermelhas. – Posso acompanhar qualquer pessoa que conte histórias. Mas na frente de tanta gente eu... Eu não sei se vou ter coragem.
     -- Bom, eu acho que você consegue. Mas não quero forçar – assegurei, antes que ele se fechasse ainda mais. – Pense nisso com carinho. Nesse meio-tempo, ajude os dois a fazer os convites. Para daqui a quatro noites, lembrem-se. E podem dizer que vai ter um jantar muito bom com aquela cerveja reservada para os mestres. Isso vai ajudar a convencer algumas pessoas.
     -- Vai mesmo! Pode deixar – piscou Orm, e nos despedimos naquele clima cheio de boa-vontade e otimismo.
      E – talvez por uma bênção especial do Grande Espírito – a acolhida não foi diferente, quando conversei com o único outro habitante da Ala Azul.
     Muitas pessoas achavam que vivíamos isolados, e talvez essa tivesse sido mesmo uma das razões para Kieran escolher seus aposentos quando chegou ao Castelo das Águias. Julgando por mim, no entanto, eu achava provável que a Ala Azul também o houvesse conquistado. Era a mais antiga, toda de pedra, ao estilo dos homens das Terras Férteis; tinha três torres, uma das quais tinha servido de habitação aos senhores de Vrindavahn até que Theoddor, o último descendente, optasse por um cômodo térreo na Ala Rosada, a mais próxima da floresta que ele tanto amava. Rydel, que o sucedera como professor de Ciências da Terra, vivia lá agora, e eu fora sua vizinha de cima por algumas luas até me mudar para a Ala Azul com o mago que se tornaria meu marido. Nem discutimos quanto a esse ponto, porque eu também adorava nossa torre, com janelas que descortinavam as mais belas vistas de Vrindavahn, móveis antigos e elegantes e os cômodos aquecidos por lareiras e tapeçarias. Ali, só ali, a pele de urso que meus parentes me deram de presente de casamento não parecia deslocada – e ali, mais do que qualquer outro lugar, o homem que lia recostado nos travesseiros me parecia aquele com quem eu queria passar o resto da vida.
     -- Você aqui, a essa hora? – perguntei, pois de fato não esperava encontrá-lo. – Achei que você e Finn estariam fora de alcance o dia todo.
     -- Não. O trabalho com o Terceiro Círculo já terminou, felizmente. E agora é você que pode se pôr ao meu alcance.
     Sorriu, aquele sorrisinho torto que dizia tanto em silêncio, e deixou o livro de lado, bem no momento em que eu deslizava para junto dele e me aninhava em seus braços.
     -- Sua trança está meio desfeita. Deixe-me arrumar – disse Kieran; e, claro, o que fez foi acabar de soltá-la. – Que cabelo macio...! Quanto tempo eu tenho com você antes que fuja para planejar sua Grande Noite das Sagas?
     -- Ah, já está sabendo? Quem lhe disse? – perguntei, com uma ponta de apreensão. Se houvesse sido Urien, havia um risco de ele ter falado além do que deveria. Kieran, porém, disse que soubera através de Camdell, a quem eu e o mestre de Música havíamos consultado, logo de manhã, para saber se podíamos prosseguir com os nossos planos. Claro que o Mentor havia adorado a ideia.
     -- Eu também acho que vai ser bom – disse meu marido, ainda com o nariz afundado no meu cabelo. – Uma noite com música e ouvindo histórias... Principalmente se forem as suas.
    -- A ideia é que não sejam só as minhas. Mas, claro, vou contar algumas também, possivelmente abrir a noite. Você me acompanha com a harpa, não é? Pelo menos em uma ou duas, para revezar com o Urien?
     -- Claro que sim. – Kieran pegou minha mão esquerda, afagou dedo por dedo, com ar pensativo. – Estou curioso com as histórias que vai escolher.
     -- Alguma coisa sobre a viagem à Ilha dos Ossos, certamente. E uma que aprendi na Floresta do Sol. Precisa saber com antecedência? Para ensaiar um pouco, talvez?
     -- Ah, não. Pode me surpreender – disse ele, e se voltou para mim, com os olhos brilhando e um sorriso ainda mais eloquente. – Na verdade, acho que esse pode ser o melhor momento da noite.


***

Continua....

Parte 1

Parte 3

Nenhum comentário:

Postar um comentário