sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A Grande Noite das Sagas - Parte 4


       -- Então, quando pensávamos que seríamos vendidos como escravos ou remaríamos o barco do pirata pelo resto da vida – e que, com o tratamento que nos dariam, nossas vidas seriam bem curtas --, uma coruja branca, enorme, pousou perto de nós na praia. E adivinhem no que ela se transformou, bem diante de nossos olhos! Uma elfa, amigos! Sim! Vocês estão certos em se espantar, pois nós também mal podíamos acreditar naquilo, mas é a verdade, e se não confiam neste velho perguntem a Mestre Thorold! Ele estava junto!
      -- É a mais pura verdade! – afirmou o Conselheiro, arrancando ainda mais exclamações da audiência. Joot lançou a todos um olhar triunfante, depois continuou a narrativa, tendo ao fundo os acordes discretos do alaúde tocado por um aprendiz do Castelo. Não precisava de muita mestria, nem sequer de grandes variações; a música servia apenas para realçar os momentos mais emocionantes da história. E que história! Que narrador! Eu precisava trazer Joot mais vezes ao Castelo para contar aquelas sagas das Terras Geladas!
      -- Ele é bom, hem? – soprou Urien, ao meu lado. – Melhor ainda que o careca, com toda a sua experiência.
      -- Ah, mas Mestre Tomas contou uma história engraçada dos seus tempos de saltimbanco. Não há como comparar com uma de piratas e naufrágios – ponderei. – Ele também foi ótimo. E ajudou muito, aceitando o convite para falar logo depois de nós e de Freydis.
      -- É mesmo. O tagarela do Arnak já disse que quer contar uma história, e olhe os filhos do Naheen persuadindo a mãe a fazer o mesmo. Sua Noite de Sagas é um sucesso – declarou o Mestre de Música, após o que fez uma pausa, olhando-me com atenção. – Mas acho que você está inquieta com alguma coisa.
      -- Não estou inquieta, só... pensando em como resolver um impasse – respondi, e me voltei para as pessoas no salão. Depois de duas horas, durante as quais fora servido um excelente jantar, todos pareciam relaxados e à vontade. Muitos haviam mudado de lugar e iniciado conversas animadas, que, no entanto, cessavam quase completamente durante as histórias. Até as crianças paravam para ouvir, voltando a brincar e a explorar nos intervalos, quando os adultos retomavam a conversa e os empregados passavam servindo mais bebida. Comida não era mais necessária: estavam todos satisfeitos, as últimas bandejas de doces e frutas quase intocadas nas mesas. Isso queria dizer que a cozinha fizera um bom trabalho, Netta podia se desobrigar... Mas por que ela não tinha vindo até o salão?
       Meus olhos se detiveram sobre uma das mesas mais afastadas. Ali estavam o marido dela, Nils, e o filho de ambos, Holger, alto como o pai e com a mesma tendência a ficar com o rosto vermelho. Netta me contara que ele tinha sido um adolescente rebelde, mas isso mudou com a chegada de Camdell, que na primeira conversa percebeu o pendor de Holger para os estudos e o encaminhou a um mestre em Vrindavahn. Três anos depois, ele entrou como aprendiz para o comércio, e agora trabalhava numa das maiores casas mercantis na cidade. Os pais o visitavam com frequência, mas ele raramente vinha ao Castelo, e nunca havíamos trocado mais que algumas palavras. Era uma surpresa vê-lo ali, na minha comemoração de aniversário. Ou talvez ele tivesse vindo apenas por gostar de ouvir histórias. De qualquer forma, se alguém sabia de Netta, essas pessoas eram ele e Nils, por isso decidi falar com eles e pedir que fossem chamá-la. Só precisava esperar que Joot concluísse sua narrativa.
        As notas do alaúde soaram mais agudas, como se alarmadas, quando o pescador descreveu o conflito entre Thorold e os tripulantes do seu barco. As pessoas se inclinaram para a frente, bebendo cada palavra, e foi quando percebi um leve rumor de conversa na mesa mais próxima à nossa.
        -- Você tem que parar com isso. – A voz abafada de Freydis, dirigindo-se a um Andi silencioso e acabrunhado. – Vamos treinar nossa vontade como magos, aprender a mexer com as forças da natureza e até com a mente das pessoas, e você não consegue contar uma história? Como vai avançar nos estudos desse jeito?
       -- É mesmo, Andi – disse Orm. – Ainda por cima, hoje é uma noite de festa, não uma competição. Ninguém vai exigir que você seja perfeito.
      -- Silêncio! – Thalia se voltou para eles com o cenho franzido e o dedo sobre os lábios. Os três se encolheram, ressabiados, e senti que devia ir até eles antes de mais nada.
       Meus aprendizes precisavam de mim.
       Joot arrematou sua história com uma frase de efeito e se inclinou para os aplausos. Finn esperou alguns instantes para deixar que ele os saboreasse e anunciou um novo intervalo, que um grupo de alunos mais velhos se encarregou de preencher com música. Várias pessoas se levantaram, e eu me aproximei da mesa onde estavam as crianças.
       -- Discutindo de novo? – perguntei, em tom brincalhão. – E pelo motivo de sempre?
       -- Mestra Anna, Andi é impossível! – declarou Freydis, abanando a cabeça. – Hoje, mais cedo, ele havia prometido que contaria uma história. Até treinou depois do almoço, e eu achei muito bom. Mas agora...
       Encolheu os ombros, olhando para o amigo como se esperasse uma explicação. Andi também se encolheu, sustentando aquele silêncio cada vez mais incômodo. Por fim, murmurou:
        -- É que não fico à vontade com tanta gente. Minha língua tropeça. Se aqui estivesse só o pessoal do Castelo, ou se as histórias de Mestre Tomas e Joot não fossem tão boas, eu... talvez...
        -- Deixe de bobagem! Você vai se sair tão bem quanto eles – Orm insistiu.
        -- Eu também acho, Andi. Acho que podia tentar quebrar essa barreira. Mas não vou forçar – acrescentei, fazendo os outros dois fecharem a boca. – Espere a próxima história, que deve ser a da mãe de Hakim... Perceba que cada narrador tem seu próprio jeito, que nada tem que ser executado à perfeição... E logo mais me diga – concluí, olhando para o lugar onde tinham estado Nils e seu filho. Eu não os vira sair, nem sabia onde tinham ido, embora fizesse uma boa ideia.
        E assim que as crianças assentiram, uma canção se iniciando para indicar que tinha algum tempo até a narrativa de Amina, rumei com passos apressados em direção à cozinha.

Continua...

Quer saber que história foi essa contada pelo Joot? Clique aqui.

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