Chegando ao Labirinto, esvaziei os bolsos e me sentei para contar o dinheiro. Eram moedas estrangeiras, e eu tinha experiência bastante para saber que valiam pelo menos três dirans de ouro: uma bela colheita. Guardei-as num dos meus esconderijos e subi até a fonte, onde me lavei e enchi o maior jarro que era capaz de carregar. De volta a casa, troquei as calças de acrobata por um par mais confortável e ia me barbear quando ouvi a voz de Ariela, que me chamava da porta, sem querer correr os riscos de uma entrada súbita. Disse-lhe para não fazer cerimônia, pois eu estava vestido -- e foi quanto bastou para que, no instante seguinte, o espelho refletisse um rosto claro e sério por trás do meu.
-- Bom dia, Cyprien. Obrigada por levar o leite -- disse ela, um tanto ríspida, colocando um embrulho sobre a mesa. - Sua roupa está aqui, secou muito rápido, com todo esse sol. E se quiser tenho um pouco de carne cozida que dá para todos. É até bom que venha -- acrescentou, baixando a voz. -- Ao menos sei que não vai ficar contra mim, quando os dois recomeçarem.
-- Mas nunca fico contra você. Só o que não quero é me envolver nas suas discussões.
-- E por que não? Você é como se fosse da família, e, cá entre nós, é o único membro dela a ter um pouco de senso. Oh, isso foi tudo que não pedi a Deus: além de um marido tonto, um sogro rabugento, e ainda por cima o Alfonz não tem me deixado em paz. Está ouvindo? Não posso sair um instante, e ele logo começa a berrar. E por falar nisso, não quer vir de uma vez comigo? Ele parece meio quente, eu até procurei Rowenna, mas ela saiu muito cedo esta manhã. Talvez você saiba de algum chá que eu possa dar a ele.
Um tanto a contragosto, assenti, deixando minha tranqüilidade para entrar na atmosfera sempre agitada da casa vizinha. Pippo e Mandol estavam na sala, o primeiro afinando um alaúde, o outro rondando, aflito, o berço de Alfonz, que, deitado de costas, chorava e soluçava com as mãozinhas na boca. Só mesmo aqueles três para não perceber o que o menino estava sentindo.
-- Então, pequeno, o que há com você? -- perguntei, aproximando-me do berço. Alfonz parou de chorar assim que me viu, estendeu os braços, soltando um gritinho alegre quando o levantei. Como de hábito, ele avançou para abocanhar meu queixo, mas logo se desprendeu, franzindo a testa ao perceber alguma coisa diferente.
-- Upa! É melhor tomar cuidado -- exclamei. -- Ainda não fiz a barba hoje.
-- Qual barba...! -- riu Pippo, divertido. -- Meia dúzia de pelos, e mal se podem ver. Isso não arranha ninguém.
-- Arranha um bebê -- disse Ariela, franzindo o cenho.
-- E ele já pode me dar o troco -- falei, tentando passar ao largo da discussão. -- Vê a gengiva de baixo, como está irritada? Isso é um dentinho que está querendo apontar.
-- O quê? Um dente?
-- Mas já? -- fez Mandol, olhando admirado para o neto. -- Pensei que ainda fosse levar algumas luas!
-- E o que é que eu dou a ele? -- perguntou Ariela, muito prática.
-- Não sei -- respondi, passando-lhe o garoto. -- Ou melhor, Rowenna me explicou uma vez, mas prefiro esperar que ela volte. Eu não tive quase nenhuma experiência com isso.
-- Grande Cyprien! -- exclamou Pippo. -- Músico, acrobata, ladrão e curandeiro. Pode dizer qual o remédio, Ariela confia mais em você do que em Rowenna. É verdade! -- insistiu, vendo que eu erguia as sobrancelhas. -- Foi ela mesma quem me falou!
-- Eu não disse isso - replicou Ariela. -- Só disse que Cyprien tem mais boa vontade. E nem foi em relação ao remédio, mas a outra coisa, que aliás eu ia mesmo...
-- Não! Nada disso -- cortou Mandol, com um gesto de irritação. -- Você não vai pedir a ele que fique com o Alfonz, e isso pelo simples fato de que você não vai sair. Onde já se viu? Com um filho ainda no peito, e ainda mais doente, e quer ir dançar nas tavernas? Será possível que não tem nenhum juízo?
-- Ele não está doente, só irritado -- rebateu a nora. - E o senhor sabe muito bem que ele toma leite de cabra há quase uma lua. E quanto a dançar, pelo que me lembro, eu sempre disse que queria continuar, e o seu filho prometeu que não me impediria. Como é que o senhor, meu sogro, está dizendo que não vou sair?
-- Ariela, vá com calma, meu pai não está de todo errado -- disse Pippo, já começando a suar frio. -- Alfonz ainda é muito pequeno, e precisa de você, e talvez... Bom, talvez Cyprien nem possa ficar com ele esta noite.
-- Era isso que eu ia dizer – falei. Pippo suspirou, aliviado. Ariela apertou os lábios, mas não disse nada, limitando-se a voltar as costas e a tratar de concluir o almoço.
A carne tinha um cheiro ótimo, e o sabor se revelou ainda melhor, mas, por mais que tivesse decidido não me sentir culpado, não fui capaz de apreciá-la como deveria. Era difícil negar ajuda a quem sempre fizera tanto por mim. Apesar disso, eu estava resolvido a cortar certas amarras, e além de tudo tinha mesmo um compromisso para a noite, por isso fiquei firme e não voltei atrás. Já era tempo de estabelecer os limites da minha gratidão.
Meu encontro da tarde tinha um pouco a ver com isso, mas, havendo também vantagens para mim, eu não o encarava como se estivesse fazendo um favor. Desde a morte de Gontran, vinha me aperfeiçoando com outros saltimbancos, e, embora já houvesse superado a todos, ainda faltava aprender como passar o ofício adiante. A única forma era através da prática, por isso me propus a ajudar Thespio, o antigo mestre de Aymon, que já tivera vários alunos e era como um segundo pai para todos eles. Essa era a principal razão para que eu o preferisse aos demais. Não queria que nenhuma criança viesse a sentir por mim o que eu sentia por meu padrasto.
O treinamento já havia começado quando cheguei. Sob o atento olhar de seu pai, Dara, a filha de oito anos de Thespio, praticava malabarismo com argolas, enquanto Aymon trabalhava com o outro aprendiz, um garotinho de quatro anos. Quando entrei, eles me olharam, mas continuaram a treinar, ao passo que Dara recolheu as argolas e olhou interrogativamente para Thespio.
-- Ora, por que eu? Dê você mesma o recado -- disse o pai, de um jeito ríspido que não era o habitual. -- Foi você quem o recebeu, não foi?
-- Que recado é esse, Dara? -- perguntei, já apreensivo.
-- De Rowenna, que eu e minha mãe encontramos no mercado. Ela quer que você vá com ela ver o Édobec.
-- O Édobec? Mas como é que eu posso vê-lo, se ele está preso?
-- Isso não é para hoje -- disse Thespio, com o cenho franzido. -- É para amanhã, no patíbulo; e não é só para ver o homem, mas para fazê-lo tomar uma poção. Rowenna diz que com isso ele vai ficar meio dormindo, e assim vai aguentar melhor as chicotadas. Mas cá entre nós, Cyprien, se eu fosse você, não arriscaria o meu pescoço por tão pouco. Não que o Édobec não mereça -- acrescentou, depois de refletir por uns instantes --, mas é muito difícil fazer uma coisa dessas sem dar nas vistas.
-- E se eles dissessem que era só um pouco d’água? -- sugeriu Dara. -- Ou se misturassem a poção num jarro de vinho? Assim, ninguém ia perceber nada.
-- Talvez não, mas o problema não é esse -- disse Thespio, sem perder o ar carrancudo. -- Se fosse só isso, Rowenna poderia muito bem se arranjar sozinha. Acontece que a poção é de efeito curto, e o Édobec tem que tomá-la quando já estiver no patíbulo; e, caso você não saiba, é proibido dar de comer ou de beber a um prisioneiro que está para receber a pena. Uma pessoa pode ser presa se a virem fazendo isso.
-- E tanto pior se for do Povo Alto, é claro -- completou Aymon. -- Você não está pensando em ir, está?
-- Não sei -- respondi, porque realmente não tinha certeza. Se eu bem conhecia Rowenna, e ninguém a conhecia melhor do que eu, havia boas razões para que nos arriscássemos, embora eu não visse nenhuma além do simples fato de Édobec ser um de nós e estar em apuros. Por outro lado, essa razão bastava para eu querer ajudá-lo -- ou ao menos deveria bastar, já que, diante da oposição de Aymon e Thespio, eu começava a me perguntar se valeria a pena. O que seria aquele pequeno gesto diante de tudo que nos faziam passar?
-- Não adianta remar contra a maré -- dizia, em tom amargo, o saltimbanco. -- Desde a Reconquista, muita gente já tentou, e eles sempre levam a melhor. Não ouviu as histórias? O nobre Ali, Assiá dos Tamancos, Lovat, Firmin, Haney o Audaz com a sua revolução... Esse foi o pior de todos, arrastou oito homens para a forca, além de uns trinta presos e açoitados. Foi por ter seguido Haney que morreu um de meus melhores amigos, Elias, o fabricante de sabão. O pai da sua namorada -- concluiu, com um olhar que me fez estremecer.
Não pelo pai de Tina, que eu nem chegara a conhecer, mas por ela própria.
-- Você precisa ter cuidado com essa moça -- prosseguiu Thespio, como se adivinhasse meus pensamentos. -- Ela tem boas qualidades, isso eu não contesto, mas é muito rebelde, e ultimamente anda falando demais. A cada vez que alguém é preso, ela faz um discurso. Um dia, isso vai acabar caindo nos ouvidos errados, e ela vai ter o mesmo fim do pai. E você também, Cyprien... Se continuar a se deixar conduzir por Rowenna.
-- Não me deixo conduzir por ninguém -- rebati, irritado. Thespio sustentou meu olhar sem dificuldade, depois deu de ombros, como se desistisse da discussão. Qualquer um, aliás, teria feito o mesmo, principalmente por estarmos falando de Rowenna. Ela se ocupara de mim, sem dúvida -- chegara até a me querer como aprendiz --, mas não me conduzia, ou, pelo menos, não mais do que conduzia a qualquer outro morador do Labirinto. Para nós ela não era apenas uma curandeira, mas sim uma espécie de sábia, a conselheira e a bruxa-madrinha do Povo Alto. Nós todos nos sentiríamos meio perdidos sem a sua luz.
Sem voltar ao assunto, levamos o treino adiante, e logo a tensão se dissipou para dar lugar à camaradagem de sempre. Sob a orientação de Thespio, Aymon e eu acompanhamos os garotos em vários exercícios, alguns executados com entusiasmo, os mais fáceis com uma displicência que acabou por lhes valer um belo sermão. Foi um daqueles inspirados, mas foram só palavras, sem nada dos tabefes e varadas que Gontran me dava por muito menos. E, no entanto, eles ficaram afinadíssimos depois daquilo.
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Parte 1
Parte 3
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