-- Agora já não deve faltar muito -- comentou Pippo. -- Daqui a pouco vão trazer o prisioneiro. Eu vi o filho dele por aí, andando de um lado para o outro, com um ar de quem não tem esperança. Parece que muita gente está achando que o velho não resiste.
Isso olhando para mim, como se soubesse da minha conversa com Rowenna; e, na verdade, bem podia ser que ele estivesse mesmo a par de tudo. Dependendo do vento, cada um de nós ouve muito bem o que se diz na casa do outro. De qualquer forma, o olhar de Pippo não me pareceu acusador, por isso imaginei que ele partilhava a opinião de meus amigos. Tina fora a única a exigir que eu me arriscasse por um velho que mal conhecia. Só assim se orgulharia de mim como se orgulhava da memória de seu pai.
-- Ei, Cyprien! É difícil achar você, hem? -- comentou Aymon, que acabava de chegar até nós. Thierry vinha logo atrás, abrindo caminho entre cotoveladas e pedidos de desculpa. Ao longe, o rufar de tambores anunciou a chegada do Prefeito, e a multidão se alvoroçou ainda mais, comprimindo-se e esticando os pescoços na tentativa de ver o grande homem. De braços cruzados, nós também olhávamos naquela direção, embora fosse improvável que conseguíssemos enxergar alguma coisa. Quanto ao patíbulo, ainda estava vazio, exceto por dois guardas que se encarregavam de impedir que as pessoas subissem. A execução estava atrasada, como sempre. Essa era mais uma daquelas situações que só acontecem em Pwilrie.
-- Já estamos aqui há um bom tempo -- disse Pippo. -- Onde será que puseram o velho? Vai ser ainda pior para ele se o açoitarem no calor do meio-dia.
-- Isso devia acabar -- disse Sanson, inconformado. -- Alguém devia fazer alguma coisa.
-- Como o quê? -- fez Thierry, olhando para mim. Cúmplice como era, o olhar continha também uma boa dose de malícia, e eu tinha acabado de franzir o cenho quando o pintor, que procurava calcular as horas pelo sol, soltou uma exclamação de surpresa.
-- Olhe, Cyprien, é Tina! É ela que está no alto do velho sobrado!
-- O quê!? -- exclamei, um calafrio percorrendo meu corpo da cabeça aos pés. Por trás dos lençóis, o vulto feminino tornou a passar, mas, embora eu me esforçasse ao máximo, não vi nada que me levasse a reconhecer minha namorada. Olhei para Sanson, como se pedisse uma explicação, e ele afirmou que vira claramente a mulher se deter por um instante e meter a cabeça entre dois panos.
-- E era Tina - disse, judiciosamente, como se minha dúvida o tivesse ofendido. -- Eu sou pintor, faço retratos, nunca me engano com uma fisionomia. Você pode ir até lá se quiser; e aposto um barril de vinho, do melhor que houver em Pwilrie, em como vai cair direitinho nos braços da sua garota.
-- Vamos lá, Cyprien -- disse Aymon, vendo que eu parecia indeciso. -- Thierry e eu subimos com você.
-- Isso mesmo -- disse o músico. -- Se houver qualquer problema, já vão ser três adagas para enfrentá-lo.
-- Não é esse o tipo de problema que eu temo -- suspirei. -- Mas vamos, sim, dar uma olhada no sobrado. Se Tina não estiver lá, ao menos vai ser um bom lugar de onde ver a praça.
-- Mas ela está, pode crer -- disse Sanson, quando já nos afastávamos, avançando a custo pela multidão de pessoas impacientes. Elas ficavam mais agitadas a cada instante.
-- Chegamos -- disse Thierry, e nós três nos detivemos a olhar para o sobrado. Muitos anos atrás, ali tinha vivido um rico negociante, que, segundo a lenda corrente em Pwilrie, enlouquecera ao encontrar a filha única na cama com um dos aprendizes. Sua fortuna se dissipara rapidamente, e a casa passara às mãos de credores que, por alguma razão, não se interessaram em ocupar e conservar o velho sobrado. Agora, a construção tinha um aspecto sinistro, com algumas partes meio desabadas e a madeira podre, e tudo isso tornava perfeitamente compreensível o fato de ninguém ter se aventurado a subir ali. Isto é, ninguém à exceção daquela mulher, que Sanson afirmara com tanta veemência tratar-se de Tina.
E agora tudo indicava que havia chegado a nossa vez.
-- É melhor que Cyprien vá na frente -- disse o músico, e Aymon concordou, fosse por medo ou por não querer tocar na porta. A mim também ela causava uma certa repugnância, mas. não podendo recusar -- afinal, tratava-se da minha namorada -- acabei por dar um bom empurrão naquele bocado de tábua úmida e carcomida. Rangendo horrivelmente, a porta se abriu, deixando à vista uma sala nua e sombria, no centro da qual se destacava uma escada em formato de caracol. Com certeza era por ali que se chegava ao sobrado.
-- E então? -- perguntou Aymon, às minhas costas. -- Acha que devemos subir?
-- Bom, eu pelo menos vou -- respondi, e os dois não disseram nada, apenas me seguiram quando fui em frente. Era preciso cuidado, porque não havia corrimão, e a madeira ameaçava ceder a cada instante sob nossos sapatos. Imaginei os pés de Tina, calçados em sandálias baixas, pisando a sujeira incrustada nos degraus. À medida que eu subia, mais e mais me parecia improvável que ela se houvesse metido naquele antro.
-- Tina! -- chamei, por desencargo de consciência, antes mesmo de ter chegado ao segundo andar.
-- Sanson está maluco - disse Aymon. -- Ela não pode ter subido aqui.
-- Ah, é? E por que não? -- replicou Tina, surgindo subitamente diante de mim. Aquilo não era totalmente inesperado, mas mesmo assim levei um susto, e o meu recuo quase fez Aymon sair rolando escada abaixo. Tina não estendeu a mão, não se mostrou solícita como seria o habitual. Também não pareceu achar graça, como Thierry e até o próprio Aymon quando conseguiu se equilibrar. Sua expressão, serena à primeira vista, deixava transparecer um estranho ar de desafio, e eu engoli em seco quando ela caminhou até perto de mim.
Pelo jeito, eu ainda tinha o que ouvir por conta da noite anterior.
(Continua...)
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Parte 11
Parte 13
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