domingo, 28 de maio de 2017

Além de Agora : um conto de Cyprien de Pwilrie (Parte 16)




       A muito custo, e bem devagar, fui avançando em direção ao patíbulo. O progresso era mais difícil a cada passo, e recuar teria sido impossível, pois a multidão se comprimia ainda mais às costas dos que iam passando. Agora, eu já atravessara metade do percurso, e chegara a ver pessoas amigas, mas a massa de corpos à minha volta impedira a aproximação. Tentei não pensar na possibilidade de o mesmo ter acontecido com Thierry e Aymon. Se eles não conseguissem adesões, nosso plano tinha grandes chances de ir por água abaixo.
      -- Abram caminho! Abram caminho! -- soou, repentinamente, a voz de um arauto. -- Deem espaço para a passagem do cortejo!
      -- Maldição -- murmurei, por entre dentes, enquanto a multidão vibrava com a chegada do prisioneiro. Escoltado por vários guardas, ele vinha de pé sobre uma carroça, um homem envelhecido e emaciado, com longos cabelos brancos e os pulsos presos por uma corrente. Vê-lo desse jeito fez se erguer em mim uma onda de revolta, que me ajudou a avançar mais rápido.
       Por fim, depois de pisar muitos pés, dar e levar cotoveladas de tirar o fôlego, encontrei-me diante do patíbulo, no lado oposto àquele onde ficava a escada. Havia talvez uns dez guardas ali em cima, apontando suas lanças para a multidão, mas eu sabia que só restariam quatro depois de terem feito subir o prisioneiro. Também o carrasco já se achava a postos, com o capuz e o manto vermelho que usava como distintivo, e seu ajudante acabava de subir para lhe entregar o chicote. Era um daqueles pesados, com tiras que terminam em bolas de chumbo, e minha revolta aumentou mais ainda quando vi a satisfação do homem ao recebê-lo. Ninguém jamais vai me convencer de que um carrasco não faz mais que cumprir seu dever de ofício. Para aceitar esse cargo, um sujeito tem que gostar de provocar dor.
         Apertei os lábios sob o ruído da multidão. Havia um pouco de tudo, aplausos, protestos, até mesmo risos, como se houvesse graça em ver o suplício de um pobre velho. Imaginei o que faria aquela gente se eu fosse apanhado enquanto o ajudava. Certamente achariam ótimo que mais um rato do Povo Alto fosse posto a ferros.
        -- Kip -- murmurou, de repente, uma voz a meu lado. Voltei-me, sabendo muito bem a quem iria ver, mas espantado com a forma pela qual ela se aproximara sem que eu percebesse.
         -- Aqui está -- disse Rowenna, passando um frasco minúsculo para minha mão. -- É só um gole, e é o bastante para entorpecê-lo. Mas mesmo assim você tem que esperar o momento exato.
         -- Eu sei. Meus amigos vão ajudar. Algum deles falou com você?
         -- Não, mas eu imaginei que você teria um plano. Espero que dê certo, seja qual for. Boa sorte, e tenha cuidado, Kip.
         Voltou as costas, aproveitando um recuo da multidão para se afastar do patíbulo. Com todo cuidado, ajeitei o frasco da poção entre dois dedos, afrouxando a rolha para poder destapá-lo no momento certo. Se eu calculasse bem espaço e movimento, poderia cruzar o patíbulo em dois saltos, sem quase me deter diante de Édobec. Só um gole, e ele não sentiria o chicote se abatendo sobre suas costas. Só um erro... E seria a minha vez.
         A ideia se aferrou a mim como uma maldição, ecoando no ritmo do tambor que anunciava a chegada do prisioneiro. Sem piscar sequer uma vez, olhei para a multidão que se comprimia em torno do patíbulo, vi Édobec ser empurrado aos tropeções escada acima, ouvi os gritos com que ele implorava perdão. Tudo isso vinha através de meus olhos e ouvidos, mas a imagem mais nítida pertencia ao passado, e nela estavam todos aqueles que haviam me aconselhado a não fazer aquilo.              Agora, eu quase podia ouvir de novo Thierry me chamando de louco, ver o cenho franzido de Thespio, sentir a tristeza de Mandol pelo fracasso das revoltas. Acima de tudo, podia ouvir o cego Omar, sua voz saindo das histórias antigas para nos conclamar ao silêncio. Talvez essa tivesse sido a escolha mais sábia.
        Respirei fundo, tentando me concentrar na tarefa que tinha à frente. Eu podia ser um tonto, podia mesmo ser impulsivo como Haney, mas estava determinado a não ter o mesmo fim. Já que chegara até ali, devia fazer o melhor possível, e isso dependia tanto da sorte quanto da minha habilidade.
        E, pelo que a vida me tem mostrado, é com a segunda que devo contar se quiser continuar inteiro.


Parte 1
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